Imprensa "Portugal tem de facilitar a vida aos investigadores" (Jornal i)

Notícias | 30-03-2012

GRAÇA CARVALHO
Relatora de um documento estratégico para a ciência e inovação quer que esta área seja central na reprogramação do QREN  
 
 
A eurodeputada Maria da Graça CARVALHO é uma das mães do futuro programa europeu de financiamento da ciência e inovação 2014/2020. O Horizonte 2020 quer aumentar o impacto social e económico da investigação, com mais apoio à inovação e à transferência dos resultados para o mercado. Nesta fase de ajustes nos relatórios que darão corpo ao programa está preocupada com a indefinição que ainda existe em torno de pontos críticos da estratégia: como apoiar a demonstração industrial de resultados e os projectos-piloto. Quer contributos, dos investigadores, para as PME ou para os grandes clusters industriais. Foi numa dessas jornadas de debate que o i esteve em Bruxelas a semana passada, numa audição do comissão da Indústria, Investigação e Energia. A ex-ministra da Ciência, Educação e Ensino Superior exprime o empenho em trabalho: é das primeiras a entrar no parlamento e das últimas a sair, das 8h00 até às 22h. Acredita que Portugal pode atalhar caminho se aproveitar a reprogramação do QREN para criar emprego qualificado e dar mais estrutura à ciência e à inovação.  
 
- Uma das propostas na audição foi que houvesse mais auditorias dos tribunais de contas ao investimento público em ciência. Concorda?  
 
- Em princípio todo o investimento público é auditado. A ideia passa mais por perceber que impacto tem tido este investimento. É certo que os indicadores têm melhorado: aumentámos o número de doutorados e projectos. Mas Portugal pensava que o investimento em ciência e tecnologia era condição necessária e suficiente para o crescimento económico. Hoje percebemos que é necessária, mas não suficiente. Só há impacto na economia se a sociedade tiver capacidade técnica para absorver os resultados da investigação: temos de ter indústria, mercado e condições socioeconómicas como nível de instrução elevado em toda a população, o que ainda não é uma realidade. Há uma série de factores que fizeram com que o investimento consistente em ciência em Portugal nos últimos anos não tivesse impacto económico. E é uma pena, porque agora ouvimos falar de recrutamentos de grande escala a acontecer no país, por exemplo nas áreas da saúde. Gastamos cerca de 7 mil euros por ano na formação de um enfermeiro. Esse investimento está a fugir.  
 
- Não poderiam ser tomadas medidas mais proteccionistas?  
 
- Não podemos: temos de reconhecer que a mobilidade existe mas que as pessoas preferem, regra geral, ficar no seu país. Resta criar as condições para que possam ficar no país e contribuir para a economia nacional. O resto da Europa está vivo e irá, de uma forma organizada, procurar atrair os melhores recursos. Por isso é que é importante delinear um programa que não sirva só uma determinada região da Europa, o centro, onde estão por exemplo os maiores pólos de startups. A nível interno, é também importante que países como Portugal tenham a atitude de facilitar a vida aos investigadores que conseguem financiamento. Neste momento os investigadores ganham projectos e levam com uma série de barreiras burocráticas e de falta de liquidez das instituições.  
 
- Como é que o programa vai abordar essa desigualdade na capacidade instalada?  
 
- Temos de delinear o programa para que o número de candidaturas de países mais pequenos e periféricos e estruturas mais pequenas, mas sempre de qualidade, aumente. Temos de promover a investigação em consórcios, que permite envolver mais investigadores de países periféricos do que as candidaturas isoladas. Depois podemos ter, para cada consórcio, uma percentagem de 10% ou 20% de recursos dedicados a grupos com qualidade mas menos estabelecidos. Ou abrir candidaturas em que se exige que uma universidade mais estabelecida numa área leve uma mais nova. Outro exemplo é criar concursos em que queremos propostas de pares de instituições de diferente dimensão, por exemplo um centro de investigação e uma PME.  
 
- Portugal parte em que categoria?  
 
- Portugal já tem uma participação razoável no último programa-quadro (2007- 2013). Temos uma forte participação de alguns institutos e das maiores universidades e uma menor participação da parte da indústria, que devia ser maior. Antes da crise a Grécia tinha uma participação em algumas áreas seis vezes superior à nossa, muito pelas relações internacionais que conseguia desenvolver. Não estamos acima do limiar de outros países, mas recuperamos o investimento que fazemos. Não somos a Holanda ou o Reino Unido, mas também não somos a Roménia ou a Polónia, que acabam por estar mais a financiar e não conseguem competir por financiamento.  
 
- Não por não terem excelência científica, mas por terem lacunas estruturais, defende. É por isso que importa redefinir o conceito de excelência cientifica no acesso aos concursos do programa?  
 
- Há indicadores tradicionais: as citações, os factores de impacto das revistas em que publicam. Este problema da definição de excelência científica é um problema muito específico da Europa. Temos uma arquitectura muito sui generis: temos um programa em comum mas temos histórias muito diversas. Temos excelentes investigadores em países como a Hungria, que não têm uma estrutura em termos de instituições que lhes permita concorrer, co-financiar. Daí sentirem, de forma legítima, que estão a pagar pela investigação de outros países.  
 
- Tantas preocupações - apoiar a investigação básica, a inovação, atrair indústria e integração - não tornam o sucesso da estratégia mais difícil, tendo em conta um mercado global de inovação?  
 
- Sim, mas penso que esta diversidade pode ser uma vantagem. Continuamos a ser o maior mercado interno do mundo, a ter o maior número de países com triplo A. Estamos numa crise financeira mas temos muitos pontos positivos. Temos de partir do nosso valor acrescentado - esta diversidade que não faz sentido ser deixada de fora - e tirar partido dos nossos valores, das nossas boas relações com países terceiros, da nossa capacidade de diálogo, das nossas preocupações ambientais. Depois temos de ultrapassar os nossos pontos fracos: falta de massa crítica, estarmos dispersos e termos pouco pontos de excelência. Temos dificuldades na passagem para o mercado, é indiscutível. Alguns países descuidaram a base industrial e têm de a refazer, quer a mais tradicional quer apostando na mais inovadora.  
 
- Apoios no âmbito destes programas europeus como as bolsas Marie Curie ou financiamentos do Conselho Europeu de Investigação (ERC) não criam alguma desigualdade dentro das instituições, com menos orçamento ou financiamentos mais pequenos?  
 
- É uma área em que se eu pudesse fazer alguma coisa fazia. Em Portugal temos uns dez investigadores com bolsa do ERC e felizmente temos 400 investigadores excelentes - sei porque fiz uma recolha de quem tinha mais de 100 artigos em revistas de grande impacto. Alguns não têm ERC porque não concorreram ou concorreram e não foram seleccionados, porque o ERC selecciona muito poucos projectos. Temos uma situação no país em que há bons investigadores com muito financiamento, como todos deviam ter, mas depois temos todos os outros com grandes dificuldades. Sei que para ter descobertas um investimento grande faz a diferença. Precisávamos de aumentar esse número de investigadores bem financiados: aumentar os ERC para os 100/200 e já ficava mais equilibrado. O mesmo com as bolsas Marie Curie [de formação e progressão na carreira].  
 
- Ouve-se muito o discurso público do triunfo da ciência, com qualidade e competitividade internacional. Estamos assim tão bem?  
 
- Nós preparámo-nos para o futuro, estamos preparados com infra-estruturas, com organização e essencialmente com um número considerável de doutores, técnicos e engenheiros. Estamos preparados para o crescimento económico, só que ele tarda em vir. Tenho esperança que com a reprogramação do QREN para estes dois anos se consiga um investimento considerável para a ciência e a inovação. Falta-nos aplicar 60% de 21 mil milhões de euros, são 12 milhões de euros. Dava para criar 200 mil empregos qualificados, mas nem que fossem só 50 mil. No Horizonte 2020 vamos querer fazer a ponte entre o programa-quadro e os fundos estruturais. Os fundos devem servir para financiar equipamento, bolsas, dar dimensão às estruturas e ajudar as PME que estão a preparar propostas para se candidatarem ao programa-quadro. Temos de ter o financiamento articulado para que se consiga uma arquitectura financeira que permita passar da investigação para o mercado. No futuro, a proposta a nível europeu é que 80% dos fundos estruturais sejam destinados à inovação. São dois Horizontes 2020 [o programa tem um orçamento proposto de 79 milhões de euros].  
 
- Em emergência, acha esta vai ser uma das preocupações das Finanças?  
 
- Espero que sim, e que esta mensagem chegue ao ministro das Finanças. Vítor Gaspar é um investigador nato, só se não for possível é que não terá atenção aos investigadores e ao emprego científico.  
 
- Quando foi para o Imperial College em Londres fazer o doutoramento, nos anos 80, sentiu-se um cérebro em fuga?  
 
- É engraçado: saí de Portugal sempre que o FMI esteve no país. Saí em 1978 e voltei a sair em 1983. Em 83 tive consciência do que me fez sair: tinha voltado a Portugal depois do doutoramento e não foi bem a falta de financiamento, mas todas as barreiras burocráticas. Lembro-me de estar na alfândega para tentar levantar uma bobine com o programa que tinha desenvolvido no doutoramento e foi um problema, faltavam os papéis, as autorizações. Voltei assim que aderimos à UE exactamente porque concorri a fundos europeus, ainda em 85, com um ex-supervisor e um professor com quem estava a colaborar na Alemanha. Ganhámos e portanto eu tinha de ir fazer o projecto para Portugal. Tive de certo modo a inteligência ou a sensibilidade de ter estado fora nos anos difíceis.  
 
- É o mais inteligente nos dias de hoje?  
 
- Não digo isso, a situação mudou. Há hoje em Portugal uma massa crítica de ciência e uma sensibilidade para a ciência que não havia então. Hoje temos os fundos estruturais, antes era só OE. Quando havia uma restrição no orçamento não havia onde ir buscar dinheiro.  
 
- Mas o trabalho falta ou é precário...  
 
- Mas estamos dentro da UE, temos fundos estruturais que vamos utilizar com certeza para a ciência, vamos continuar a concorrer ao 7.° programa-quadro. E há mais condições para fixar os cérebros, os médicos, os técnicos. Uma das medidas mais pragmáticas é a utilização dos fundos que temos para estes dois anos nesse sentido. Garantir que não ficam por usar e dão trabalho às pessoas qualificadas, não só para dar trabalho mas porque elas vão contribuir para o desenvolvimento do país.  

Ver artigo completo da jornalista Marta Reis aqui.

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