Doutoramentos
Desde o ano 2000 que não havia tão poucas bolsas para estudos avançados. FCT diz que é transição e não corte
Notícia de MARTA F. REIS
Pontuações diferentes para o mesmo orientador e na mesma instituição - ao ponto de ditar a atribuição de bolsa a um candidato e a exclusão de outro. Geografia e antropologia, disciplinas que até aqui estavam separadas e que em 2012 admitiram 19 e 12 candidatos a doutoramento, foram fundidas sem justificação e aprovaram apenas seis candidatos. Depois do choque de se perceber que a razia anunciada nas últimas semanas nos bastidores da academia era real, ontem dispararam nas redes sociais e no fórum dos bolseiros queixas de candidatos excluídos nos últimos concursos de bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramento, que agora têm dez dias úteis para iniciar o processo de contestação aos resultados na Fundação para a Ciência e Tecnologia.
André Janeco, presidente da Associação de Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), admitiu ao i que além de erros processuais, por regra corrigidos em sede de recurso, pode haver irregularidades. Mas explica que terão de avaliar as dezenas de situações antes de tomarem medidas, além do protesto já convocado para terça-feira, que visa uma mudança da política científica em curso, que acusam ser de puro corte. "Um pedido de impugnação teria sempre um grande impacto", sublinha Janeco, considerando que o essencial agora é contestar os resultados dos concursos onde 9% dos candidatos a doutoramento e pósdoutoramento foram aprovados, contra rácios que em 2010 - último ano com informação comparável - rondaram os 46%. Desde o ano 2000 que a Fundação para a Ciência e Tecnologia não aprovava tão poucas bolsas como aconteceu em 2013. A FCT invoca uma "política de convergência gradual dos instrumentos de apoio" para uma distribuição mais equilibrada do montante disponível para a actividade científica, assegurando que não há menos verbas e que o objectivo é que os estudantes com bolsa tenham condições de desenvolver o seu trabalho em instituições devidamente financiadas. Mas mesmo tendo em conta as 431 vagas de doutoramento atribuídas às instituições para abrirem directamente posições, uma novidade introduzida no ano passado, já que antes os candidatos apresentavam a sua candidatura individual à FCT, após apalavrarem orientação numa instituição, no total foram garantidas 1018 bolsas de doutoramento e pós-doutoramento contra 1812 no concurso de 2012. Isto incluindo já outras bolsas atribuídas no âmbito de parcerias internacionais ou concursos mais específicos, para as quais ontem a FCT não apresentou números para 2012, mas que já existiam nesse ano.
Se entre os estudantes as críticas são unânimes, a comunidade académica dividese. Maria do Carmo Fonseca, directora do Instituto de Medicina Molecular de Lisboa, defendeu ao i que embora o corte seja difícil, era necessário ajustar o número de doutoramentos que o país suporta às vagas para investigador que será possível abrir nos próximos anos. "De outra forma, estaríamos a preparar uma situação de desemprego ou exportação de cérebros, quando esse investimento pode melhorar as condições de trabalho dos cientistas", disse, lembrando também que no passado a bolsa de doutoramento foi por vezes usada como primeiro emprego e não no início de uma carreira científica.
Se para a Maria do Carmo Fonseca a estratégia da FCT faz sentido, André Moitinho de Almeida, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, acredita que se está perante "desculpas para cortar" e avisa o argumento de que não consegue absorver investigadores pode vir a comprometer o trabalho científico. "Durante anos as universidades estiveram entupidas com a geração pós-25 de Abril que agora começa a reformar-se e não está a ser substituída. Temos departamentos só com duas pessoas, vamos perder linhas de investigação e massa crítica", diz o astrónomo, que acredita que nos próximos dois anos se não se acomodarem, por exemplo, os doutorados - e no concurso de 2013 ficaram mais de mil de fora - os estudantes não terão outra hipótese se não emigrar para continuar fazer ciência. "Em astronomia corremos o risco de perder 30 pessoas quando somos pouco mais de 100 cientistas".
Moitinho de Almeida contesta a ideia de que o investimento público em ciência se mantenha, como apontam os orçamentos da FCT, denunciando que a par da razia nas bolsas o financiamento de projectos de investigação tem vindo a cair. "Se o orçamento se mantém, não sei para onde está a ir o dinheiro. Possivelmente foram acomodadas novas rubricas de despesa", diz. Fonte da FCT explicou ao í que parte das verbas em 2013 (ano em que o OE lhe deu mais 26 milhões) foram usados para regularizar dívidas como quotas em organizações internacionais. Ainda assim, o balanço anual do investimento em ciência mantém tendência positiva: em 2012 foram 415 milhões e em 2013 424 milhões, segundo dados oficiais disponibilizados ao i.
Para a eurodeputada e investigadora Graça Carvalho, o número de bolsas terá de aumentar, mas acredita que não há um retrocesso mas uma transição estratégica que apanha também a transição no financiamento europeu para um novo quadro, que promete trabalho anual a 10 mil investigadores em Portugal. "Não estou pessimista, mas é preciso que a solução seja rápida", disse ao i. Para Alexandre Quintanilha, o cenário é menos auspicioso. O investigador defendeu que o corte de 50% nas bolsas de doutoramento e de 70% nas de pós-doutoramento arrisca a ser um retrocesso de décadas para o país, considerando-o um sinal "nefasto e muito perigoso."
FCT PASSA A DIVULGAR VAGAS DISPONÍVEIS
Lisboa A FCT esclareceu ontem ao i que, não obstante a redução de bolsas nos resultados divulgados, os números de 2013 ainda não são finais, uma vez que faltam os períodos de audiência prévia e de recurso. Adiantou também que os investigadores responsáveis por projectos financiados em 2012 e 2013 foram informados da possibilidade de revisão de rubricas orçamentais de modo a contrair mais recursos humanos, nomeadamente em pós-doutoramento. Para este ano, a fundação adianta que os totais de vagas serão comunicados na abertura dos concursos, algo que em 2013 não aconteceu.
Casos
Ana Taborda, 33 ANOS
Doutorada com louvor e 19 valores, foi a segunda vez que viu chumbada a candidatura a pós-doutoramento. Mais do que a redução nas vagas, revolta-a a injustiça: em 2012, foi-lhe atribuída uma pontuação de 4.7 ao mérito académico. Este ano, com o mesmo currículo e mais cinco publicações, o valor neste critério baixou. Foi penalizada por não trabalhar num projecto financiado pela FCT, mas numa colaboração internacional que ligaria a Faculdade de Ciências de Lisboa ao Instituto de Radioprotecção e Segurança Nuclear em Paris para estudar a simulação de detectores de partículas como os usados no CERN. Não toma a concorrer e já decidiu aceitar o convite que tinha para emigrar. Em Março ruma a Paris, com direito a contrato de trabalho.
Inês Félix
28 ANOS
Inês também tem planos para emigrar, chumbada a segunda candidatura a bolsa de doutoramento. Tem um plano de estudos na área da História da Educação, para demonstrar como os pedagogos defendem há 100 anos mais experimentação, mas sempre no velho paradigma de memorizar conteúdos. Com 18 valores no mestrado, primeiro concorreu na área de Educação, desta vez em História. Eram 87 candidatos, entraram cinco. Depois de ter pago 3500 euros nas propinas do ano curricular do doutoramento que não vai conseguir fazer em Lisboa, o último investimento será no nível de inglês para se poder candidatar lá fora. Com um filho de dois anos, "a sair é agora", diz.
GRAÇA CARVALHO
Eurodeputada do PSD, e relatora do novo quadro de financiamento europeu de ciência Horizonte 2020
"São precisas mais bolsas mas é uma fase de transição"
- Como vê a redução nas bolsas? Desde 2003 e 2004 temos noção que precisamos todos os anos de mil bolsas de doutoramento e 600 de pósdoutoramento. Estes números estão abaixo do que é a dimensão do país quando tem havido uma estratégia continuada de crescimento e suporte à comunidade científica. E isso tem dado fartos: somos o país que mais cresceu na Europa em número de doutores, em publicações e temos 8,2 cientistas por mil pessoas activas o que é o quarto lugar na Europa. Esta fase é um corte ou uma transição? É uma situação de transição. Estamos com restrições orçamentais, mas também numa transição de quadro financeiro a nível europeu. O novo quadro comunitário está a ser negociado e espera-se que a ciência seja uma prioridade, com programas de inclusão de doutoramentos nas empresas e mais bolsas. Vamos receber 27,1 mil milhões de euros nos próximos sete anos e 1500 bolsas de doutoramento mais 500 bolsas custam 25 milhões, os fundos comunitários servem perfeitamente.
Não teme retrocesso?
Acredito que haverá novas soluções a curto prazo mas é certo que terá de haver uma resposta em breve porque a comunidade científica é muito móvel, as pessoas são muito qualificadas e não podemos correr o risco de os perder. Os fundos europeus poderão servir para dar emprego a 10 mil cientistas por ano quando temos 40 mil no país.