Francisco Sá Carneiro continua a ser uma referência para o PSD. É com frequência lembrado pelos dirigentes do partido e dado como um exemplo a seguir. O que representa Francisco Sá Carneiro para o PSD?
Francisco Sá Carneiro é a grande referência moral do PSD. O seu pensamento, os seus valores, são a bússola que nos continua a posicionar como partido. Um partido fiel aos princípios da social-democracia, do Estado de Direito democrático, aberto ao mundo, atento à economia, determinado nos seus objetivos, mas dialogante e disposto a adaptar-se aos tempos em que se insere.
O Instituto Francisco Sá Carneiro vai reeditar o segundo volume da coleção de textos de Francisco Sá Carneiro. Estamos a falar do período entre 1973 e 1974. Sá Carneiro renunciou, nesta altura, ao mandato na Assembleia Nacional, mas não deixou de ter intervenção pública. Este período é importante para o lugar de destaque que Sá Carneiro ocupou na vida política depois do 25 de Abril?
Este é um período relativamente curto, mas de extrema importância para aquele que será o futuro político de Sá Carneiro e do próprio país. Temos de recordar que Sá Carneiro deixou a Assembleia Nacional profundamente desiludido com o desprezo e hostilidade com que são recebidas as propostas de abertura democrática da Ala Liberal. Meses depois, sofreu um grave acidente automóvel, que quase lhe custou a vida, e que lhe exige uma lenta e dolorosa recuperação. Estes condicionalismos levaram-no a contemplar seriamente a hipótese de abandonar a atividade política. Mas não o fez. E essa decisão viria a revelar-se decisiva, não apenas para o seu percurso pessoal, mas para o país.
O que destacaria da intervenção de Sá Carneiro antes do 25 de Abril, nomeadamente na Assembleia Nacional?
Sá Carneiro chega à Assembleia Nacional e apanha todos de surpresa. Incluindo quem o convida a desempenhar as funções de deputado. Era inimaginável que alguém, naquelas circunstâncias, começasse imediatamente a denunciar abusos cometidos por organismos públicos, a exigir o fim da censura, a propor a adoção de uma Constituição democrática, a defender a realização de eleições presidenciais livres. Toda a sua intervenção é completamente disruptiva para com o status quo vigente. E toda ela aponta já para o caminho da democracia que Portugal virá a seguir depois. Aliás, muitas das ideias que defendeu naquele período levariam ainda, já depois do 25 de Abril, vários anos a ser concretizadas. Isso diz tudo sobre o impacto que teve.
No prefácio deste segundo volume escreve que, em 1973, destacava-se já como um político diferente que ganhou popularidade muito depressa. Que razões explicam esta popularidade?
Francisco Sá Carneiro tinha uma qualidade muito rara e valiosa num político, que é o carisma. Julgo que não teremos tido muitos casos comparáveis na história da nossa democracia. Mas o seu maior apelo, na minha opinião, era a sua autenticidade, que era reconhecida pelas pessoas. Era um espírito livre, numa altura em que o próprio país ainda não tinha liberdade. Nasceu num meio privilegiado, com todas as condições para prosperar dentro do regime vigente, mas optou sempre pelo caminho mais difícil, seguindo a sua consciência. Não era prisioneiro de agendas ou interesses, fossem estes quais fossem. Isso trazia esperança aos portugueses.
O que fazia de Sá Carneiro um político diferente?
Era essa autenticidade. O facto de ser guiado apenas pela sua própria consciência, sendo ao mesmo tempo capaz de ouvir e de aprender com os outros.
Diria que Sá Carneiro era um político de direita, centro-direita ou centro-esquerda?
Essa é uma pergunta para a qual não existe uma resposta linear. Se pensarmos bem, no próprio PSD, até aos dias de hoje, continuamos a ter diferentes sensibilidades, umas mais à esquerda, as outras mais à direita, e julgo que isso, longe de ser uma incoerência, é uma das nossas riquezas, que herdámos de Sá Carneiro. Na sua matriz, o partido que ele funda é claramente inspirado no modelo das sociais-democracias do Norte da Europa, desde o SPD alemão a Olof Palme, na Suécia. Aliás, quem começou mais à esquerda, e posteriormente fez uma aproximação a essa corrente, foi o PS de Mário Soares. Mas Sá Carneiro nunca foi um político que se deixasse prender por ideologias estanques.
O atual líder do partido, Rui Rio, disse que só entrou para o PSD por causa de Sá Carneiro. Depois de o PSD ser criado houve muitas pessoas que aderiram ao partido devido ao carisma de Sá Carneiro?
Houve muitas pessoas que, não se revendo nas correntes políticas dominantes da altura, nem em muitos dos seus protagonistas, viram no PSD, e particularmente em Sá Carneiro, a grande esperança de garantir que Portugal iria de facto tornar-se num Estado de Direito democrático e plural. Disso, não tenho dúvidas.
Ainda hoje é muito lembrada a AD criada por Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Ribeiro Telles e o movimento de reformadores. É uma aliança irrepetível?
Essa foi uma geração de políticos absolutamente notável. Não gosto de utilizar o termo ‘irrepetível’, porque soa quase como fatalista. Poderemos ter ainda outras AD, mas serão diferentes, porque as pessoas são diferentes. Uma coisa é certa: vejo em Rui Rio algumas das qualidades importantes de Sá Carneiro, como a frontalidade e o sentido de dever, do que está certo, acima de tudo o resto.
André Ventura disse, no congresso do Chega, em Évora, que ‘se Sá Carneiro estivesse vivo hoje acreditava em muitas das coisas’ que ele diz e apresentou-se como ‘o herdeiro dele’. Quer comentar?
Já tive ocasião de dizer que, de uma forma geral, não considero que as atitudes e intervenções do dirigente desse partido reflitam os ideais e os valores de Sá Carneiro. De resto, são bastante contrárias ao pensamento de Sá Carneiro, que era uma pessoa cosmopolita e inclusiva.
Como tem visto a atuação da União Europeia durante a pandemia?
A atuação da União Europeia deve ser dividida em fases. Uma primeira fase de alguma hesitação, no início do ano passado, numa altura em que muitos – eu incluída – já apelavam a medidas mais decididas, nomeadamente ao nível do investimento no desenvolvimento de terapias e vacinas para a doença. Uma segunda fase em que, a meu ver bem, se tomaram medidas corajosas na frente da resposta económica a esta crise pandémica e se avançou para a contratualização conjunta das vacinas. E a fase em que nos encontramos atualmente, na qual a União está a tentar corrigir o que não tem corrido tão bem, e a aumentar a pressão sobre os fabricantes, um em particular, para que cumpram os contratos assinados.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse recentemente que o processo de vacinação não correu bem na Europa. O que está a correr mal?
Houve alguns erros de cálculo, de resto já assumidos pela presidente da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen. Sobrestimámos, por exemplo, a capacidade instalada de produção na indústria. Depois, é preciso referi-lo, houve um interveniente em especial – a AstraZeneca – que até agora tem defraudado completamente as expectativas criadas em torno da sua capacidade de resposta, com a agravante de se ver envolvida em incidentes pouco transparentes. Mas, apesar de tudo, estou otimista de que, reforçando os mecanismos de controlo, e diversificando os meios de produção e até as próprias vacinas utilizadas, seremos capazes de superar as dificuldades.
Apesar de estarmos a perder tempo...
É de lamentar o tempo perdido, que se traduz em vidas perdidas e em danos económicos.
Se tudo correr bem vamos voltar a alguma normalidade depois de vivermos um período completamente atípico devido à pandemia. Prevê grandes mudanças nas sociedades a seguir a esta pandemia?
As nossas sociedades já estavam confrontadas com a necessidade de serem produzidas grandes mudanças, mesmo antes do início desta pandemia. Os desafios da transição climática e da transição digital são estruturais. Irão obrigar todos os setores a fazerem mudanças de fundo. Num certo sentido, a pandemia veio acelerar essa transformação, nomeadamente ao nível do uso que fazemos das tecnologias digitais.
Algumas alterações, como o teletrabalho, vieram para ficar?
Provou-se que é possível fazer uma parte substancial do trabalho à distância, sem perda de eficácia e com ganhos significativos, até em termos de impacto ambiental. E muitas empresas e instituições já veem essa forma de trabalhar como uma alternativa a longo prazo, que irá continuar a ser usada para além desta pandemia.
A Educação também deveria aproveitar para mudar, nomeadamente com a utilização das ferramentas digitais?
As ferramentas de e-learning continuarão a ser desenvolvidas e cada vez mais utilizadas. Não tenho dúvidas a esse respeito. Tal não significa que se deva desvalorizar a importância do ensino presencial, que é absolutamente fundamental em inúmeras áreas, sobretudo as que envolvem mais trabalho prático, além de ter outras funções, nomeadamente na construção da identidade social do indivíduo.
Não é consensual, em Portugal, entre a direita e a esquerda a forma como devem ser utilizados os fundos comunitários para responder à crise provocada pela pandemia. Concorda com aqueles que acham que a resposta do Governo está muito concentrada no setor público?
Os fundos comunitários – e aqui englobo plano de recuperação, fundos regionais, programas específicos como o Horizonte Europa – devem ser encarados como um todo, que servirá o fim comum de fazer de Portugal um país melhor. Sim, terão um papel crucial na saída da crise, mas devem ser utilizados e projetados com o médio e longo prazo em vista, até porque estão vinculados aos grandes objetivos da União. Para as transições verdes e digital, para a indústria, para a promoção da coesão social e territorial. Foi essa a visão do PSD, numa agenda estratégica tornada pública e da qual, infelizmente, o Governo fez pouco uso.
O PSD teria outra estratégia para os fundos comunitários...
Uma das principais diferenças entre o plano do PSD e do Governo é a prioridade por nós dada ao setor produtivo, nomeadamente às pequenas e médias empresas (PME). No plano de recuperação, choca-me, por exemplo, a falta de atenção dada aos setores cultural e criativo, que são indústrias importantes no país. Mas muitos investimentos entendidos como dirigidos ao setor público são também benéficos para toda a economia. Não apenas na Saúde ou na Educação, mas, por exemplo, ao nível de infraestruturas necessárias para o desenvolvimento. O fundamental é que esses investimentos sejam bem feitos.
O que gostaria que mudasse no país aproveitando esta oportunidade?
Gostaria que tivéssemos uma economia mais diversificada, decididamente apostada em tirar partido da ciência e inovação como fator diferenciador, que combatêssemos os fossos regionais, entre litoral e interior, e que aproveitássemos esta transição verde e digital para nos tornarmos mais competitivos enquanto país e mais sustentáveis, não apenas no plano ambiental como no económico. Por exemplo, apostando fortemente em dar competências básicas a roda a população na área digital.
Entrevista conduzida por Luís Claro, jornalista do jornal 'Nascer do Sol'