O debate em torno do levantamento das patentes das vacinas contra a COVID-19 - que é também o tema de uma resolução que será esta quarta-feira votada em plenário no Parlamento Europeu - evoluiu para uma retórica simplista em que, na versão repetida por muitos, de um lado estariam os países pobres e aqueles que os pretendem ajudar e, do outro, farmacêuticas focadas no lucro e estados ou grupos políticos a estas subjugados.
Esta narrativa tem a suprema ironia de colocar no papel de heróis países que têm reservado para consumo interno as vacinas que produzem, como os Estados Unidos, e no extremo oposto vários Estados-membros da União Europeia, que é a maior exportadora mundial de vacinas COVID e dos seus componentes, bem como a maior doadora, de forma destacada, através da iniciativa COVAX.
Porém, o principal problema não é esse, e sim o facto de, como estratégia, a suspensão das patentes estar longe de garantir o objetivo que todos pretendemos alcançar: imunizar o mais depressa possível toda a população mundial.
Não tenho objeções de princípio à possibilidade de serem levantadas patentes de vacinas ou de medicamentos e princípios ativos. Embora seja sempre uma medida com efeitos ambíguos, que cria perturbações em todo o ecossistema de inovação em saúde, há situações em que sou favorável a que seja dado esse passo. Nomeadamente, como refere o Acordo de Propriedade Industrial (TRIPS) da Organização Mundial do Comércio, quando estão em causa crises de saúde pública. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Brasil e na Malásia em relação a medicamentos antirretrovirais contra o VIH/SIDA.
A questão é se esse regime de exceção se aplica à atual situação e contribuiria para a resolver. A meu ver, não.
Países, como a Índia, com capacidade financeira e tecnológica para produzir as vacinas baseadas na tecnologia de RNA mensageiro (mRNA), aquelas que se têm revelado mais eficazes na prevenção do coronavírus, não precisam de levantamentos de patentes para o fazerem, bastando-lhes para tal fechar acordos de produção com as farmacêuticas. É o que já está a acontecer na União Europeia, com diversos acordos fechados, nomeadamente ao nível da indústria, para a transferência de tecnologia.
Já no que respeita a outros países e regiões, onde ainda não existe sequer capacidade instalada para a produção de vacinas e medicamentos menos complexos, em relação aos quais não se aplicam patentes, é pura fantasia acreditar que este levantamento resolveria os seus problemas. O equivalente a acreditar que se a NASA ou a ESA partilhassem os seus projetos teríamos o mundo inteiro a entrar na corrida espacial.
Por outro lado, onde de facto existe capacidade instalada, há ainda muito a fazer em termos de investigação científica e desenvolvimento tecnológico em torno da COVID-19, para assegurar as futuras vacinas que nos irão proteger de novas variantes.
Desencorajar o investimento nas farmacêuticas, que estão atualmente a produzir as vacinas, e que irão produzir as suas atualizações para fazer face a mutações do vírus, perturbar cadeias de abastecimento desviando componentes para unidades de produção ineficazes, criar falsas expetativas em vez de estratégias eficazes, não é a solução para ganharmos esta corrida.