A estratégia industrial, durante muito tempo afastada da agenda europeia, foi posta na ordem do dia pela atual Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Ainda antes da presente crise do Covid-19, no seu programa para quatro anos, a Comissão indicou a estratégia industrial e a autonomia estratégica da União Europeia como duas grandes prioridades. E a pertinência dessa aposta tornou-se ainda mais evidente com a atual crise de saúde pública, cujas consequências económicas estão à vista.
O momento que vivemos veio demonstrar essa necessidade de repensar a política industrial europeia, a questão da autonomia e aquilo a que a Comissão chama de “resiliência” da nossa indústria e o seu lugar no Mundo. O impacto sentido pela indústria deveu-se não só a causas essencialmente internas (a abrupta quebra da procura, a indisponibilidade de recursos humanos) como a razões ligadas à excessiva dependência externa. Alguns setores ficaram paralisados, não por escassez de demanda pelos seus produtos – na área dos equipamentos médicos e de saúde, por exemplo, esta até disparou – mas por dependerem de matérias-primas e de componentes importados de outras regiões do planeta.
Provou-se assim que a Comissão Europeia tinha razão no diagnóstico que fez. Ainda que existam fragilidades nas suas propostas, as quais também abordarei nestas linhas. Contudo, também temos nesta fase novos desafios à concretização da agenda de von der Leyen para a indústria.
Temos em cima da mesa um orçamento europeu bastante mais complexo do que os anteriores. O Quadro Financeiro Plurianual (MFF 2021/27), de longo prazo, coexiste com um plano de recuperação de 750 mil milhões de euros (Next Generation Europe), de duração mais curta, mais focado na resposta imediata à crise, no qual a quase totalidade das verbas é canalizada diretamente para os Estados-membros.
O plano de recuperação foi bem recebido pelo Parlamento Europeu. Era necessário. Contém soluções inovadoras, como a histórica partilha de risco, com a Comissão a ir aos mercados suportada pelo orçamento comunitário. Permitirá, enfim, dar uma resposta aos setores afetados pela crise, nomeadamente a indústria.
Contudo, ao ser acompanhado por um corte significativo no MFF, o entendimento alcançado em julho pelo Conselho Europeu veio também promover uma certa “renacionalização” das verbas comunitárias. O plano de recuperação é muito útil, porque é uma injeção de investimento nos Estados-membros, mas retira força a alguns dos principais programas de investimento no futuro. Projetos verdadeiramente europeus, feitos em consórcios com parceiros de vários países.
Entre as grandes áreas mais afetadas estão o Mercado Único, a Inovação (em particular o programa-quadro da Ciência e Inovação Horizonte Europa) e o Digital. Todas elas de enorme importância para a indústria. É contra essa fragilização do MFF que o Parlamento Europeu se tem manifestado, tendo deixado claro que não aceitará esse status quo e exigido a revisão do financiamento plurianual da União.
Assume-se que os Estados-membros seguirão as grandes linhas orientadoras europeias nos seus investimentos e que se coordenarão entre si. É isso que, espero, venha a ser feito por Portugal com as verbas a que terá acesso: consolidar setores importantes para a competitividade do País, como a Ciência, a Inovação, o Ensino Superior, a formação e apoio às PME; identificar projetos estratégicos, como a nova onda de renovação urbana, muito baseada na eficiência energética, ou o hidrogénio. Crucial, no caso português, será desde logo a articulação com Espanha.
Mas existe o risco óbvio de que nem todos os países atuem com este sentimento de desígnio coletivo, o que poderá agravar assimetrias entre Estados-membros e dificultar a concretização dos objetivos comuns. Basta pensar naquelas que são as linhas da Estratégia Industrial Europeia e na forma como estas estão intimamente ligadas aos pilares do atual executivo europeu.
Nas prioridades da Comissão Europeia, a política e a estratégia industrial têm essencialmente três vertentes. A primeira delas diretamente ligada ao European Green Deal. Respeita a todas as transformações necessárias na indústria para salvaguardar o futuro do planeta. Essencialmente, a adaptação às exigências do combate contra as alterações climáticas, mas não só.
Tem também que ver com o ambiente. A qualidade do ar, a qualidade da água, a economia circular. Aquilo a que se chama, na linguagem de Bruxelas, o “greening”. Esta é talvez a grande prioridade de von der Leyen para esta política industrial.
A segunda vertente respeita a toda a transformação industrial. A transição tem como fio condutor a ideia de uma sociedade baseada nos dados e também toda a aplicação dos processos de digitalização e a aplicação da Inteligência Artificial a cada vez mais setores industriais.
Na digitalização há uma grande ênfase nos dados. E existem ainda muitas interrogações, não apenas entre os industriais, mas também nas instituições europeias, sobre como fazer a transição. Há ainda muito pouca organização a nível europeu.
Como são armazenados os dados? Como podem ser utilizados? Há muitos dados, mas há muito poucos dados que sejam utilizados e que possam ser utilizáveis no dia-a-dia. Cada um armazena de forma diferente, não há regras comuns.
A Europa quer uma transição industrial muito baseada nos dados, quer basear a revitalização da sua indústria numa economia de dados. Mas teria sempre aqui um grande trabalho pela frente para garantir uma harmonização dos processos e a adoção de alguns standards comuns. E o processo não foi facilitado pelos acontecimentos do último ano.
A terceira vertente da estratégia industrial está relacionada com a autonomia. Ainda antes do Covid-19, começou-se a entrar num discurso, uma novidade nas instituições europeias, defendendo que precisamos de uma nova autonomia.
Nomeadamente em relação ao Sudeste Asiático, à China e aos Estados Unidos da América. Este discurso, refira-se, pode ser um pouco preocupante, porque não podemos cair no protecionismo. A Europa é o maior bloco exportador do Mundo e precisa de ter um equilíbrio nesta sua política de autonomia.
Contudo, é evidente que há exageros na globalização. Eles têm de ser estudados e têm de ser corrigidos. Nomeadamente certas cadeias de valor e cadeias de produção que estão demasiado abertas, que utilizam matérias-primas e produtos de muito longe, sem que haja sequer um racional económico, muito menos ambiental, para que isso aconteça. Por vezes até nas cadeias de distribuição.
Costumo contar uma história que se passou comigo. Em Bruxelas, já durante a pandemia, encomendei online alguns produtos de escritório muito simples. Uns post-its, umas pastas de plástico, clipes. Chegaram-me desde três países diferentes: uns que vinham de Espanha, outros de França e outros da Alemanha. Não há qualquer racionalidade, nem ambiental nem de ordem económica, que justifique isto.
Esta excessiva globalização, estas formas tanto de produzir como de distribuir, têm de ser repensadas. E é isso que temos defendido ao nível do Parlamento Europeu. Mas não o protecionismo.
A Comissária da Concorrência, Margrethe Vestager, que é uma grande defensora da abertura ao Mundo, tem defendido ela própria uma “autonomia aberta”. É um conceito no qual parece haver uma contradição, mas que passa por sermos autónomos porque investimos na nossa capacidade de inovar, de pensar, de investigar, mas continuarmos abertos ao Mundo.
Aliás, nesta estratégia assente no Ambiente, Digital e Autonomia falta uma quarta vertente que, a meu ver, deve ser transversal a todas as outras: a Inovação. Há vários setores, incluindo os mais tradicionais, que terão um papel relevante na recuperação económica e cuja transformação e modernização não depende só da digitalização e do chamado processo de greening. As biotecnologias, as ciências dos materiais, todos os processos químicos, serão igualmente fundamentais. Precisamos de inovação em muitos desses setores.
Como membro da ITRE – Indústria, Investigação e Energia, a comissão do Parlamento Europeu que acompanha a indústria, tenho-me batido muito na defesa de que a melhor forma de termos autonomia e de sermos resilientes em relação ao Mundo é investir nos processos inovadores e ter, portanto, uma grande capacidade de investigação, uma grande capacidade tecnológica e uma grande capacidade de inovação autónoma. Se a Europa tiver grandes centros de saber, grandes universidades, e se investir nisso, estará com certeza muito melhor preparada para uma maior autonomia industrial e uma maior autonomia em tempos de crise, sejam elas crises estritamente económicas ou uma crise de origem sanitária, como é o caso atualmente.
Contudo, e mais uma vez, um corte substancial nas propostas da Comissão Europeia para o Horizonte Europa – em relação às quais as expetativas do Parlamento Europeu eram precisamente de reforço significativo – é uma má notícia para a Europa e é uma má notícia para a indústria europeia, que precisa de ciência e inovação para se adaptar e marcar a diferença.
O contexto de resposta à crise do Covid-19 trouxe também um novo conceito que, pelo menos a mim, traz alguma preocupação: a noção de ecossistema vertical, de ecossistemas industriais, mas verticais. O seu objetivo principal é ajudar a organizar o financiamento da indústria na recuperação económica dos vários países europeus. O Comissário Europeu da Indústria e do Mercado Interno, o senhor Thierry Breton, desenvolveu o princípio de que a melhor forma de se ajudar a indústria é olhar para os diversos ecossistemas industriais. E começou por identificá-los, um por um.
O primeiro é o Turismo, depois vêm a Mobilidade, Transportes e Automóvel, a Aeronáutica, o Espaço e Defesa, a Construção. Seguem-se o Agroalimentar, as Indústrias Intensivas da Energia (vidro, cerâmica, cimento, papel), o Têxtil. Um ecossistema muito interessante, e ao qual temos também no Parlamento dado grande prioridade, são as Indústrias Criativas e Culturais. Vai ser uma grande ajuda a todo esse setor. E é interessante haver este conceito de indústria criativa e cultural. A estes somam-se toda a área Digital, toda a área de Energia Renovável,
o setor de Eletrónica, o Retalho, a Economia Social e a Saúde.
Porque é que estou um pouco apreensiva com esta abordagem? Porque falta aqui considerar o ecossistema horizontal que é a base de tudo isto. Ao escolhermos estes 14, que por sinal considero terem sido bem escolhidos, estamos a deixar de fora, por exemplo, a metalomecânica. Estamos a optar, fazendo aquilo a que em Inglês se chama de “pick the winner”.
Prefiro uma política industrial que tem por base o desenvolvimento de um ecossistema de inovação forte. E isto significa criar as condições de mercado, de leis laborais, de combate à burocracia, de leis fiscais favoráveis, de propriedade industrial bem concebida, de acesso ao investimento, que permitam desenvolver os vários setores sem escolher quais são os prioritários.
Numa crise tão grande como aquela em que estamos neste momento, devido ao Covid-19, considerando os entraves e os estudos realizados, a Comissão chegou à conclusão de que teria de ser muito específica na identificação das prioridades de atuação. E, portanto, optou por esta fórmula dos ecossistemas verticais. Mas não tem na sua política este envolvimento do ecossistema horizontal, que faz falta. É a base.
É natural que seja necessário identificar os ecossistemas mais afetados nalguns setores e ajudar esses setores. O setor da indústria automóvel, o setor aeronáutico, o setor da construção. Mas a base da política industrial tem de ser criar condições de mercado, de ajudas de Estado favoráveis ao desenvolvimento industrial. As políticas de ajudas de Estado nem sempre são favoráveis ao desenvolvimento industrial e, do meu ponto de vista, isso é mais importante do que olharmos verticalmente para cada um dos setores.
Com esta crise, deveríamos ter uma matriz destinada a criar as condições para que a indústria se desenvolva, toda ela, e depois olhar para os setores que precisam mais de atenção. E isso teria sido importante até para não se estar a criar esta uniformização a nível europeu, porque em certos países há setores que não têm tanta expressão e há outros que têm uma expressão muito grande.
Toda a indústria transformadora, a metalomecânica, que é muito importante em países como Portugal, não está aqui representada. Ela está representada um pouco no setor automóvel, um pouco na construção, mas não há aqui um setor vertical que a represente.
Em compensação, e no que respeita a Portugal, teremos entre MFF e plano de recuperação uma disponibilidade de verbas europeias nunca antes vista. Cabe-nos, cabe a quem nos governa e a quem nos governar até 2027, fazer as opções certas, garantindo que não perderemos mais uma vez o comboio da revolução industrial.