O que aconteceu a uma vacina que parecia destinada a ser um sucesso? Desenvolvida em Oxford, uma das universidades mais prestigiadas do mundo, com grande apoio político desde a primeira hora, e sustentada num grande grupo farmacêutico anglo-sueco, a vacina da AstraZeneca tem sido, até ao momento, um caso de insucesso difícil de entender. E a atitude do fabricante, marcada pela falta de transparência e fiabilidade, em nada tem ajudado a esclarecer este mistério.
Esta não é, sublinhe-se, a única vacina na qual a União Europeia depositou fortes esperanças, até agora defraudadas. Basta pensar no caso da Sanofi-Pasteur, a qual apenas recentemente começou os ensaios clínicos da sua candidata, a MRT5500, baseada na tecnologia de RNA mensageiro. Mas em relação a esta última podemos pelo menos afirmar que fomos sempre sabendo com o que podíamos contar.
A vacina da AstraZeneca, recorde-se, chegou a liderar durante muito tempo a "corrida" para ser a primeira aprovada pelas autoridades europeias. Entretanto, começou efetivamente a ser administrada no Reino Unido, graças a uma autorização especial ainda ao abrigo da legislação comunitária, rapidamente permitindo que aquele país atingisse um ritmo de vacinação considerável.
O que se seguiu, não há outro termo para o descrever, foi uma sucessão de trapalhadas, falhas de comunicação, recuos e incertezas. Em suma: comportamentos pouco transparentes, que minam a confiança dos cidadãos europeus, e colocam as instituições comunitárias e os Estados-Membros sobre uma enorme pressão para tomarem medidas mais drásticas.
Medidas que, apesar das vagas e redondas declarações saídas do Conselho Europeu desta semana, passarão inevitavelmente pela indesejável adoção de regras que assegurem a reciprocidade entre as muitas vacinas que a UE está a exportar e o zero que tem recebido.
O pior da situação da AstraZeneca é que está de facto a contaminar a imagem da Comissão Europeia, subitamente descrita por muitos "think tanks" e "opinion makers" como quase ingénua, por oposição às atitudes protecionistas adotadas por países como os Estados Unidos e o Reino Unido.
Mesmo medidas claramente positivas, como a compra centralizada das vacinas, passaram a ser criticadas. Tudo isto, claro, abrindo caminho para a teoria do "salve-se quem puder" que vai ganhando cada vez mais adeptos em vários países.
É evidente que a União Europeia tem culpas na realidade atual. Se temos 12 em cada cem pessoas com pelo menos uma dose da vacina recebida, enquanto o Reino Unido tem 43 e os Estados Unidos têm 37, alguma coisa correu mal. E a própria presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, já assumiu algumas das falhas, entre as quais a sobrevalorização da capacidade produtiva dos fornecedores e a necessidade de cláusulas mais penalizadoras para incumprimentos nos contratos. Há um trabalho a fazer, que passa, como venho defendendo, pela descentralização da produção, por um pulso firme com os laboratórios e pela identificação de alternativas válidas.
Mas nada do que se passou até agora me convence de que teríamos ficado melhor deixando cada Estado-Membro entregue a si próprio na gestão das vacinas. E nada jamais me convencerá que o facto de sermos os maiores exportadores mundiais de vacinas para os países pobres e em desenvolvimento, através da iniciativa COVAX, nos torna piores do que quem se tem pautado por uma atitude egoísta nesta matéria. No dia em que a solidariedade, interna e externa, deixar de ser uma qualidade, teremos de nos questionar sobre o que andamos todos aqui a fazer.