Chegou ao fim da vida com a mesma coragem e acutilância intelectual de sempre. Despediu-se com um poema, uma “carta de amor”, agora revelada, em que nos convocava a vivermos por ela, a depositar em nós a “esperança” da sua continuidade.
A forma como esta mulher da ciência se despediu do mundo só surpreenderá quem nunca a conheceu. Imunologista, sempre muito à frente do seu tempo, Maria de Sousa foi alguém que construiu a carreira à qual a maioria dos cientistas nem se atrevem a aspirar, sem nunca perder a capacidade de se questionar. Consagrada, jubilada, nunca parou de vibrar com os feitos das novas gerações de investigadores. Ativista contra os cinismos, calculismos, oportunismos, nunca perdeu a fé, quase religiosa, na bondade intrínseca da natureza humana.
Tive a sorte de a poder chamar de amiga. Uma amizade que começámos a moldar quando também eu me dedicava a tempo inteiro ao ensino e à investigação, e que conseguimos preservar após a minha entrada na política, apesar da sua profunda oposição à interferência das instituições na independência da atividade científica e da academia. Não éramos próximas politicamente, mas a crença comum na ciência, na sua importância fundamental para o avanço da humanidade, foi um elo que nunca se quebrou.
Nos últimos anos, geograficamente distantes, alimentávamos essa amizade sobretudo através de longos emails onde invariavelmente falávamos de política científica, de financiamento, da independência e espírito crítico que sempre considerou fundamentais para que os jovens investigadores atingissem o potencial que neles via.
Já doente, com outros motivos de saúde que a obrigavam a sessões regulares de tratamento, continuava a refletir, a questionar, a desafiar. Numa dessas nossas conversas, enviou-me um longo email que terminava informando-me que tinha de se despedir, porque já estava atrasada para o hospital. Só mesmo após essas sessões parava momentaneamente de escrever. Mas voltava sempre. Com a mesma energia.
“Em tempo de paz, espera-se da Ciência que se dedique à prática e defesa de causas nobres, individuais e coletivas”, escreveu numa mensagem enviada para uma reunião sobre Ciência que organizámos no Conselho Estratégico Nacional (CEN), a 16 de fevereiro, onde já não conseguiu estar presente. “As causas individuais incluem a liberdade, a criatividade, o direito ao conhecimento, o direito de perguntar, o direito de duvidar. As causas coletivas incluem a proteção e cuidado da saúde humana, a proteção das outras espécies, desde os insetos às árvores, às aves, aos outros animais, sem excluir, lembrando Francisco de Assis e a NASA, a Lua, o Sol, a água, as estrelas e outras galáxias (...)”.
Abominava a vaidade, recusando-a para si e repudiando-a nos outros, ao ponto de ter entrado algumas vezes em choque com pessoas que admirava e que a admiravam. No meu caso, julgo que via em mim alguém que poderia influenciar positivamente. E esse era o melhor elogio que me poderia fazer.
Numa ocasião, tendo eu sido nomeada vice-coordenadora da Comissão Ciência, Inovação, Indústria, Energia, Telecomunicações e Digitalização, enviou-me um email com os parabéns, mas onde logo confessava o seu desencanto com o rumo que a política científica europeia estava a seguir: “A Ciência, que deveria ser a raiz de todas as outras coisas, passou a ser uma delas. Não sei portanto se se vai dissipar na Europa, se vai florir só em universidades como Oxford, onde pequenas bolsas serão criadas para financiar pequenos projetos criativos e prometedores pela força da sua originalidade”, disse. “A minha esperança consigo”, terminou, “é que se pergunte sempre que tenha oportunidade: 'E o que há de diferente e original nessa avenida?”.
A minha esperança, querida Maria de Sousa, é poder honrar o seu exemplo, nunca deixando de me colocar essa pergunta.