Para se falar num transgénico o organismo tem sempre de receber ADN externo de forma a adquirir nova caraterísticas. Mas há outros GMO que não implicam estas combinações de genes, antes "gene editing".
Um salmão do Atlântico que cresce ao dobro do ritmo habitual da sua espécie graças a caraterísticas “emprestadas” pelas fanecas. Um gato que é imune ao equivalente felino do HIV, devido a genes obtidos do macaco Rhesus, e tem ainda a particularidade de brilhar no escuro, porque os cientistas utilizaram como marcador outro gene associado à luminescência de certas alforrecas. Trigo resistente a herbicidas graças aos genes de bactérias. Arroz com betacaroteno, um pigmento com propriedades antioxidantes, que ocorre naturalmente em certos legumes, como a cenoura e a abóbora, ou em frutas como a manga e o mamão.
Quando pensamos em organismos geneticamente modificados (GMO), estes são alguns dos exemplos que nos ocorrem mais facilmente, porque são também os que chegam às páginas dos jornais e aos noticiários. Inovações que parecem saídas dos livros de ficção científica, com um potencial extraordinário, mas também implicações, tanto no plano ético como em termos de saúde pública, que obrigam a um permanente escrutínio e à existência de legislação clara e rigorosa.
No que respeita aos GMO, a União Europeia tem sido um exemplo para o resto do mundo pela forma como criou e implementou um quadro legal que protege as suas populações e os seus recursos naturais de possíveis abusos cometidos em nome da ciência. E essa ética deve ser mantida, ainda que por vezes signifique competir em condições desiguais, nomeadamente no setor agrícola, com mercados mais liberais. Mas ser rigoroso não significa ser inflexível. E a Europa deve também estar preparada para rever a sua legislação quando evidências suportadas por investigação científica sólida e independente demonstrarem que faz sentido dar esse passo.
Todos os exemplos dados no início deste texto dizem respeito a GMO. Mas todos dizem também respeito a transgénicos. E é importante sublinhar esta dupla condição porque os dois termos não são sinónimos. Para se falar num transgénico, o organismo tem sempre de receber ADN externo — da própria espécie ou de espécies distintas –, de forma a adquirir nova caraterísticas. Mas há outros GMO que não implicam estas combinações de genes, e cujo desenvolvimento é comparativamente muito mais simples, preciso e, sobretudo, previsível.
Desde o início desta década, tem vindo a desenvolver-se a ritmo acelerado um processo conhecido por gene editing (edição genética), o qual, tal como o nome sugere, consiste em atuar diretamente em zonas específicas da cadeia de ADN, de forma a eliminar ou potenciar caraterísticas pré-existentes. Não obriga ao recurso a qualquer material genético externo. Para fazer uma analogia necessariamente simplista, podemos imaginar um realizador que, terminada a rodagem do seu filme, se senta com o editor num estúdio de forma a dar à sua obra a sequência desejada, suprimindo ou reduzindo as cenas que comprometem o fio da narrativa, valorizando aquelas que melhor permitem passar a mensagem.
O método de gene editing em que os cientistas veem maior potencial, é conhecido por CRISPR-Cas9. Neste método – mais uma vez dito de uma forma simples, porque a sua explicação detalhada não caberia nestas páginas -, a “edição” é tornada possível por uma enzima de restrição (ou endonuclease de restrição), que tem a particularidade de conseguir cortar a molécula de ADN no ponto desejado, através do reconhecimento de sequências específicas.
O potencial é imenso, indo muito além da indústria agroalimentar. Torna possível equacionar um futuro em que doenças hereditárias, das mais raras a diversos tipos de cancro ou à tendência para a hipertensão arterial, são eliminadas antes do nascimento. Ou seja: permite corrigir anomalias genéticas. Erros cometidos pela própria natureza. E o facto de consistir numa ação sobre o ADN existente, feita de uma forma muito minuciosa, reduz radicalmente o risco de efeitos indesejados.
Tratar esta tecnologia com as mesmas restrições que se aplicam aos transgénicos será um enorme erro estratégico e de avaliação. No entanto, é precisamente isso que a União Europeia está a fazer nesta fase. Perante a legislação existente, como tornou clara uma recente posição do Tribunal de Justiça da União Europeia, o gene editing merece exatamente o mesmo tratamento que o desenvolvimento de transgénicos.
Mas há um movimento em curso para mudar essa realidade. Na Comissão Europeia, sobretudo graças ao impulso do Comissário Carlos Moedas, através do Mecanismo de Aconselhamento Científico, tem sido feito um trabalho importante de envolvimento da comunidade científica no processo de decisão. E o CRISPR-Cas9 foi precisamente uma das tecnologias sobre as quais estes peritos foram consultados. A conclusão a que chegaram é que os potenciais benefícios justificam amplamente uma revisão do atual quadro legal.
O Grupo Europeu de Ética está, em paralelo, a desenvolver uma opinião sobre as implicações éticas do gene editing. E já existem no Parlamento Europeu inúmeros deputados fortemente empenhados em promover um trabalho conjunto das diferentes instituições europeias sobre esta matéria.
Não se trata de desregular. Mesmo sem o recurso a combinações de ADN, o gene editing poderá sempre prestar-se a utilizações abusivas, tanto na indústria agroalimentar como em termos de saúde humana. Mas não devemos tratar de forma igual o que é diferente.
Sobretudo numa época em que somos confrontados com enormes desafios — o maior dos quais a necessidade de combater as alterações climáticas preservando na medida do possível o nosso estilo de vida –, as decisões políticas devem basear-se em evidências científicas sólidas e não em interesses sectoriais ou preconceitos ideológicos.