Press Pelo direito inalienável de ser criança

Opinion Articles | 06-04-2022 in Diário de Notícias

Entre as muitas imagens que têm marcado estes mais de 40 dias de insanidade bélica, há uma que teima em permanecer gravada na minha cabeça. Aparece numa reportagem televisiva, realizada num centro de acolhimento na fronteira polaca logo nos primeiros dias do conflito. A câmara vai filmando os bens ali reunidos para serem entregues aos refugiados. Alimentos, medicamentos, roupas e cobertores...o habitual naquele contexto. Mas então surge uma secção onde se acumulam apenas brinquedos, pilhas de brinquedos cuidadosamente organizados e arrumados, como numa loja que enfeitou a sua montra para instigar aquele brilho característico nos olhos das crianças.

Curiosamente, o que mais impressiona naquela visão não é tanto o seu contraste com tudo o resto, mas o facto de fazer tanto sentido naquele contexto. As crianças que viriam a atravessar, aos milhões, aquela e várias outras fronteiras - muitas acompanhadas pela mãe, deixando o pai para trás, outras levadas pelas mãos de estranhos, outras ainda fazendo sozinhas o caminho para a segurança -, precisavam de muita coisa. De se alimentarem, de se aquecerem, de receberem cuidados de saúde. Mas acima de tudo precisavam de sentir que, naquele porto seguro, podiam começar a ser novamente iguais a si próprias. Era essa a função daqueles brinquedos: assegurar-lhes que o mundo era mais do que o terror que tinham acabado de conhecer.

Esta semana, na sessão plenária de Estrasburgo do Parlamento Europeu, discutimos um projeto de resolução multipartidário sobre a proteção de crianças e jovens em fuga da guerra da Ucrânia. Um documento ao qual tive a honra de me associar como uma das autoras.

No seu ponto terceiro, esta resolução "apela a todos os Estados Membros para que tratem cada criança procurando refúgio, em primeiro lugar, e antes de mais nada, como uma criança, independentemente da sua origem social ou étnica, género, orientação sexual, habilitação para a aquisição de nacionalidade ou estatuto migratório".

É um apelo, mas, mais do que isso, é um imperativo moral. Cada criança em fuga de um conflito, deste ou de qualquer outro que esteja a desenrolar-se no mundo, merece da nossa parte o mesmo tratamento, a mesma proteção, e as mesmas oportunidades que reservamos para os nossos próprios filhos e netos.

Os números da guerra na Ucrânia são a negação desses direitos. Dos perto de quatro milhões de refugiados que já deixaram o país desde o início da invasão russa, cerca de metade estão em idade escolar. Mais de 2,5 milhões de crianças estão ainda deslocadas dentro do país. Muitas mais viram as suas vidas viradas do avesso. As aulas estão interrompidas, ou funcionam apenas online onde tal é possível. Um total de 378 escolas secundárias e universidades foram destruídas ou tornadas inutilizáveis.

Mesmo as crianças por nascer já pagam a fatura desta guerra. Cerca de 265 mil mulheres ucranianas estavam grávidas no início do conflito, com perto de 80 mil com parto previsto no prazo de três meses. Entre as que permaneceram no país, a sua segurança e a dos seus filhos é uma incógnita. Infelizmente, já assistimos nesta guerra ao impensável: o bombardeamento de uma maternidade.

Este é o saldo de apenas 40 dias de guerra. Cabe-nos a nós, União Europeia, assegurar que não será o balanço das vidas de milhões de crianças e jovens que, mais do que quaisquer outros, estão a sofrer as consequências de algo que nada contribuíram para causar. Garantindo-lhes proteção dentro e fora das fronteiras do seu país. Protegendo-os dos riscos acrescidos de abusos e exploração a que muitos estão sujeitos, em especial as crianças deslocadas sem as famílias e as raparigas. Assegurando-lhes segurança, conforto, acesso à saúde e à educação. E também, dentro do que é humanamente possível, o direito a serem felizes. O direito de serem crianças.

 

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