À hora a que escrevo estas linhas ainda há muito por confirmar e avaliar na proposta de Orçamento do Estado para 2024 entregue na Assembleia da República pelo ministro das Finanças. Contudo, face ao que já é conhecido, tudo indica que o Governo fez, de facto, algumas concessões em matéria de política fiscal, nomeadamente em sede de IRS, mas pautou-se, ainda assim, por um enorme conservadorismo face ao que lhe era permitido pela anunciada folga orçamental "recorde" e, sobretudo, face ao que era necessário para estimular a economia e devolver rendimentos às famílias.
A desculpa oficiosa, adiantada na comunicação social nesta segunda-feira, é que o receio do cenário de uma recessão, que tem ganho força nos últimos tempos, levou o Governo a decidir ser "prudente" na redução da carga fiscal, preferindo aguardar por melhores notícias, ao nível dos cenários económicos, antes de avançar com as medidas que o país há muito exige.
Vale a pena refletir um momento sobre este raciocínio. A redução da carga fiscal é, reconhecidamente, a par de medidas de combate à burocracia e de melhoria do funcionamento da Justiça, uma das mais eficazes estratégias para estimular o crescimento económico. Mas o Governo, confrontado com o risco de uma recessão no futuro próximo, e com os cofres do Estado invulgarmente cheios, prefere guardar o dinheiro debaixo do colchão e aguardar que a economia miraculosamente recupere por si própria. É mais ou menos o equivalente a um médico recusar prescrever um medicamento a um paciente, prometendo fazê-lo apenas e só se este melhorar sem ajuda.
Mas Portugal não é o único país onde, neste momento, existem intensos debates sobre o orçamento do próximo ano. Na Irlanda - país que atempadamente adotou uma estratégia de crescimento assente numa fiscalidade altamente competitiva, acompanhada de medidas de simplificação dos procedimentos burocráticos, e que, por isso, se tornou num íman para o investimento, sendo por exemplo o destino número um na União Europeia para as grandes tecnológicas norte-americanas - também há um problema a tirar o sono aos decisores políticos: o que fazer, em 2024, com um excedente orçamental previsto de 12 mil milhões de euros, a que se seguirão outros nos anos seguintes.
Neste momento, de acordo com o Irish Times, o ministro das Finanças Michael McGrath espera convencer os deputados do seu país a aprovarem uma solução de duas vias: por um lado, financiar um fundo permanente destinado a acautelar necessidades futuras, nomeadamente em termos de pensões; e, por outro, reforçar o investimento público em programas considerados essenciais, de forma a garantir que estes serão concretizados, mesmo que a economia abrande. Deixar o dinheiro parado nos cofres do Estado não é, ao que consta, uma opção em cima da mesa.
A décalage entre os problemas portugueses e os da Irlanda seria risível, não fosse o que esta nos diz sobre o pouco que continuamos a aprender com os erros do passado, e a cegueira obstinada com que continuamos a ignorar os exemplos de sucesso que nos chegam de outros países.
Temos um Governo, há largos anos instalado no poder, que olha para o crescimento económico - o verdadeiro crescimento, e não o tímido crescimento que registámos no passado recente a reboque da conjuntura internacional - como um mistério insondável, apesar de ter perante si todas as evidências sobre quais são as fórmulas que funcionam e as que estão fadadas ao fracasso. Um Governo que prefere anunciar medidas avulsas, eleitoralistas, a fazer as reformas necessárias para que o país funcione. Um Governo que, por esta inação, desperdiça até as poucas apostas consistentes que fomos fazendo, tais como o reforço das qualificações da população. Um Governo que não sabe estabelecer prioridades no investimento, e que, por isso, desperdiça linhas de financiamento como os fundos do Programa de Recuperação e Resiliência. Um Governo que não se importa de manter o país pobre, se isso lhe permitir passar por rico.
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