Não se pode exigir às instituições capacidade de adaptação sem as dotar da margem de que precisam. São necessárias mudanças no ensino superior, que muitas vezes é “prisioneiro” das próprias regras.
Engenharia Aeroespacial, do Instituto Superior Técnico (IST), voltou neste ano a registar a nota de ingresso no ensino superior mais alta do país, com o último colocado a entrar com uns impressionantes 18,95 valores. O que torna este curso tão atrativo? Será que todos os melhores alunos das áreas tecnológicas têm a ambição de fazer carreira nas indústrias aeronáutica ou aeroespacial? Ou há outros ingredientes que pesam na altura de tomar uma decisão?
Uma dica para facilitar a resposta: mesmo a nível mundial, as vagas nestes setores não são assim tão abundantes. Porém, tanto quanto sei, não há registo de um único diplomado deste curso que, nos últimos dezassete anos, tenha ficado em situação de desemprego involuntário. Pelo contrário: a dificuldade dos professores é convencerem os estudantes a não aceitarem ofertas de emprego demasiado cedo, para não se distraírem das aprendizagens.
Parte dos alunos escolhem este curso por vocação para aquelas áreas específicas. Mas arrisco-me a dizer que uma ampla maioria o faz por saber que irá ter uma formação de excelência, exigente, abrangendo um leque alargado de competências altamente pretendidas, com uma forte base de Matemática, Física e Programação. E que, no final, não lhe faltarão opções de carreira.
Falo de Engenharia Aeroespacial porque está na ordem do dia, e porque é um curso cujo sucesso me dá particular satisfação. Enquanto presidente do conselho científico do IST e professora do departamento de Engenharia Mecânica, trabalhei bastante para que esta formação fosse criada, em 1991. Mas poderia citar mais exemplos de cursos, noutras instituições e em diferentes áreas, que dão aos seus diplomados várias janelas para o futuro. Tanto pelas bases sólidas que lhes transmitem, como pela capacidade de adaptação que lhes incutem. O desafio é fazer regra dessas exceções.
Estudar compensa sempre, tanto no acesso ao emprego como no patamar salarial a que se pode aspirar. E em Portugal essa correlação é particularmente evidente. Porém, precisamente pela relevância que tem como motor do progresso, individual e da própria sociedade, o ensino superior não pode deixar de corresponder às exigências dos nossos tempos. E a flexibilidade é um desses novos requisitos.
Hoje, um estudante que termina o seu percurso académico tem como ponto praticamente assente que terá de continuar a estudar ao longo da vida, para acompanhar as exigências do mercado de trabalho e a evolução do conhecimento. Está convencido de que dificilmente terá um “emprego para a vida”. Sabe que existem mesmo fortes possibilidades de vir a mudar de área ao longo do seu percurso profissional. E em muitos casos, além de ter consciência de tudo isto, até o deseja. Porque o seu próprio projeto de vida reflete a geração a que pertence.
O que esperam estes estudantes, nascidos num mundo tecnológico em constante e acelerada transformação, são cursos que lhes deem uma excelente preparação teórica e prática para entrarem com sucesso no mercado de trabalho. Mas também uma formação que lhes garanta um repertório de competências suficientemente vasto - incluindo as chamadas “soft skills”, como a capacidade de comunicação e a adaptabilidade - para poderem refazer o seu percurso as vezes que sejam necessárias. E as expetativas dos empregadores não diferem muito.
Conceitos como a “multidisciplinaridade”, a “aprendizagem holística”, a substituição da tradicional “disciplina” por “temas” alargados que conjugam várias áreas do conhecimento, opções de “formação customizada” em alternativa aos cursos fechados, integram-se nesta resposta que é preciso dar à sociedade. E, por muito disruptivos que possam parecer a alguns, estão intimamente ligados à raiz da própria palavra “Universidade”: o “universo”, “tudo”, o saber universal. No fundo, de uma certa forma, o objetivo é regressar a essa essência.
Um dos equívocos mais comuns é imaginar que esta visão do ensino superior nos conduz para uma espécie de cursos de “Cultura Geral”, onde se aprende um pouco de tudo sem se ficar a saber o suficiente de nada. O primeiro critério será sempre a qualidade de base das formações. E o que está em causa é conjugar conhecimentos, não os tratar a todos pela rama, o que implica um esforço acrescido por parte das instituições, mas também dos estudantes. O que estes ganham, além de opções para o futuro, é preparação em áreas de importância transversal que muitas vezes são inexistentes nos currículos mais tradicionais de determinados cursos.
Hoje em dia já ninguém contesta a importância crucial de, independentemente da área de estudo, ter competências sólidas nas chamadas Tecnologias da Informação e da Comunicação. Mas há outros exemplos menos óbvios. A Filosofia, disciplina estruturante do pensamento, pode e deve ser ensinada, com especial ênfase na ética, em todas as áreas. Nomeadamente naquelas que conduzem a profissões, desde médicos a programadores, que lidam com informações sensíveis como dados pessoais.
Contudo, não se pode exigir às instituições flexibilidade e capacidade de adaptação sem as dotar da margem de que precisam. São necessárias mudanças no próprio sistema do ensino superior que muitas vezes é “prisioneiro” das próprias regras.
No PSD, o Conselho Estratégico Nacional, onde coordeno o grupo do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia, elaborou um conjunto de propostas para o setor que visam precisamente dar às universidades e politécnicos a margem de que neste momento não dispõem para corresponderem às novas exigências.
Propostas que contemplam medidas promotoras de estabilidade, como um programa-quadro de financiamento plurianual, com níveis de financiamento e metas bem definidas. Incentivos às instituições para que estas ofereçam percursos académicos flexíveis, com formação fundamental holística e multidisciplinar, reflexão humanista em todos os cursos e competências digitais transversais. Criação de um sistema de aconselhamento científico, promovendo a participação das instituições nas decisões políticas. Maior ligação à sociedade civil e ao tecido empresarial. E uma revisão dos diferentes regimes jurídicos e estatutos de carreira do ensino superior.
Esperemos que algumas destas ideias possam servir de inspiração à Assembleia da República e ao governo, numa altura em que damos início a um novo ciclo legislativo.