Numa altura em que o tema da habitação está na ordem do dia, o primeiro-ministro veio garantir que o governo está atento ao assunto e que, no próximo dia 16, a ministra com esta pasta irá "apresentar uma lei que é um pacote com um conjunto de medidas transversais para o setor". Entre estas, um "forte" incentivo à construção por promotores privados, incentivos à colocação no mercado de arrendamento de edifícios atualmente destinados a outros fins e a criação de novos apoios ao arrendamento por jovens.
Mais do que aquilo que foi dito por António Costa, fiquei preocupada com o que este se esqueceu de referir. Porque o nosso problema de habitação não passa apenas pela presente escassez de fogos disponíveis e pelos preços praticados, mas também, em grande medida, pelo estado-geral do edificado existente. Qualquer "pacote de medidas" para a habitação que não considere todos estes fatores no seu conjunto estará fadado ao insucesso.
Num país onde a pobreza energética afeta centenas de milhares de pessoas, onde idosos continuam a morrer em consequência de não conseguirem aquecer convenientemente as suas casas, onde o parque habitacional revela níveis baixíssimos de eficiência energética e, em muitos casos, até de salubridade, não se pode pensar que se vai resolver os problemas simplesmente incentivando o aumento da oferta disponível, por mais que esta seja necessária.
Aliás, parte significativa dos problemas que hoje temos resulta de políticas urbanísticas que favoreceram a quantidade em vez da qualidade dos projetos. Por qualidade, não me refiro obviamente a luxos, mas a aspetos como a qualidade do ar e o conforto térmico, as características e durabilidade dos materiais, a sua pegada ecológica, a sua eficiência energética, e a preparação dos edifícios para fenómenos de temperaturas extremas, cheias, sismos e outros desastres naturais.
Poderia argumentar-se que o governo está a tratar separadamente o problema da degradação e falta de eficiência energética dos edifícios. Se isso fosse verdade, já seria mau, porque é preciso abordar este tema com uma visão holística e não segmentada. Mas não é. O que o governo tem feito, a este nível, é uma gota de água num oceano de problemas.
Basta confrontar, como já foi feito, os 300 milhões de euros alocados pelo governo à renovação dos edifícios com os pelo menos 70 mil milhões de euros que serão necessários para realmente resolver o problema, segundo o estudo How much will it cost? An energy renovation analysis for the Portuguese dwelling stock, dos investigadores Pedro Palma, João Pedro Gouveia e Ricardo Barbosa.
Ao ritmo atual, por mais incentivos à iniciativa privada que se anunciem, nem num século teremos o problema resolvido. E a questão é que não temos esse tempo. Não o temos porque as pessoas precisam de soluções agora. E não o temos face aos compromissos internacionais assumidos pelo país no combate às alterações climáticas.
A nível europeu, os edifícios são responsáveis por 40% do consumo de energia e 30% das emissões de gases com efeito de estufa, sendo que 75% do edificado existente é ineficiente. Até 2050, todos os edifícios têm de ter impacto ambiental zero. A diretiva comunitária que aponta para essa meta foi recentemente reformulada pela Comissão Europeia, estando atualmente em discussão no Parlamento Europeu, tendo em vista uma maior responsabilização dos estados-membros pelo cumprimento dos objetivos. Nomeadamente fixando padrões mínimos de desempenho energético, mais desafiadores do que os agora aplicados por muitos países, que terão de ser cumpridos e fiscalizados.
O nível de exigência é muito elevado. A tarefa, sobretudo no caso de Portugal, é imensa. Mas também existem diversos instrumentos financeiros disponíveis, desde iniciativas como o InvestEU, os Planos de Recuperação e Resiliência e os fundos regionais. Se, de facto, tratar em conjunto os problemas do acesso à habitação e da qualidade da habitação, o governo ficará mais próximo de resolver os dois. Caso contrário, irá apenas mascarar os problemas do presente e criar novos para o futuro.
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