Numa entrevista concedida ao Expresso, descrita por aquele jornal como uma "resposta aos críticos", a ministra da Presidência congratulou-se com a execução dos fundos europeus do Portugal 2030 e do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), declarando: "Cumprimos exatamente o que devíamos ter cumprido".
O motivo para este balanço, "muito positivo" segundo a governante, foi a divulgação de dados, relativos às referidas linhas de financiamento, dando conta de que a execução do Portugal 2020 finalmente parece estar a recuperar dos atrasos dos últimos anos e que, no caso do PRR, foram executados mais dez milhões de euros (num total de 1410 milhões) do que o projetado até 31 de dezembro de 2022.
Falando especificamente do PRR, muito se poderia dizer sobre "cumprimento" quando se executou num ano menos de 10% de uma linha de financiamento que terá de estar concluída em 2026. Muito se poderia dizer sobre a exigência que o governo impôs a si próprio, na resposta a uma crise presente e imediata, ao definir um calendário de execução que reserva para os últimos anos o grosso do esforço de investimento.
Mas, sendo a execução dos fundos europeus obviamente importante, o principal problema da estratégia do governo - e aquele que mais tem motivado preocupação nos "críticos", entre os quais se inclui o Presidente da República - nem sequer é a quantidade, mas a qualidade do investimento realizado.
Qualidade que faltou no desenho do PRR submetido a Bruxelas, com um peso excessivo do setor público, por oposição a iniciativas destinadas a fazer evoluir todo o país, incluindo o setor privado e em especial as empresas, nas três grandes linhas de ação definidas: resiliência, transição climática e a digitalização. E qualidade que tem faltado na execução do referido plano, onde é cada vez mais esmagadora essa décalage entre público e privado.
De acordo com os dados sobre a execução do PRR disponíveis na página do programa Recuperar Portugal, os mesmos que permitem à ministra concluir que o governo fez "exatamente" o que deveria ter feito, até ao momento, dos 1410 milhões de euros do PRR efetivamente pagos, apenas 153 milhões se dirigiram às empresas privadas.
A ministra, na sua entrevista, referiu a "exigência" da execução do PRR. Mas será que esta exigência apenas se aplica a determinados setores? É pelo menos o que parece quando constatamos que as entidades públicas já receberam, até agora, 455 milhões, e que as empresas públicas já totalizam 279 milhões.
E será assim tão exigente fazer chegar investimento às instituições do ensino superior, ao ponto de estas terem recebido até agora 41 milhões de euros? E que dizer das instituições do sistema científico e tecnológico - ou seja dos centros de investigação e inovação - para que lhes tenham sido entregues apenas nove milhões de euros? Não se entende, por exemplo, porque não foi esta oportunidade aproveitada para fazer um novo programa de reequipamento científico, tão necessário para estas instituições. O anterior teve lugar em 2004.
Falamos apenas dos setores que têm mais capacidade para criar riqueza, conhecimento e inovação no país. Aqueles que mais podem contribuir para o crescimento da nossa economia. Para o cumprimento das ambiciosas metas assumidas, nomeadamente ao nível das transições climática e digital. Mas que, no "guião" do PRR do governo, foram relegados para papéis secundários. E, na prática, estão a ser reduzidos a figurantes de uma história, que nada tem de nova, sobre o desperdício de oportunidades.
Que o governo insista em ignorar os avisos que vai recebendo, já é suficientemente mau. Mas quando ouvimos uma das suas mais altas representantes afirmar que tudo isto está "em linha com o programado", só podemos mesmo fazer soar todos os sinais de alarme. Porque se a visão da tutela passa por continuar a afunilar recursos na máquina do Estado, negligenciando todos os restantes setores da sociedade, não precisamos de relatórios nem de estatísticas para sabermos que a estratégia vai correr mal.
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