“Sou idoso, não idiota.” A história de Carlos San Juan agitou Espanha e simboliza o outro lado da moeda da transição digital. O homem de “quase 80 anos” criou uma petição com mais de 600 mil assinaturas para obrigar os bancos espanhóis a reconhecer que estão a ir depressa de mais na digitalização dos serviços.
O episódio gerou, rapidamente, milhares de reacções, e colocou a nu a exclusão de uma franja da sociedade do processo de digitalização: uma transição tida como inevitável, mas que pode acentuar desigualdades. A União Europeia (UE) já manifestou o objectivo de ser a líder mundial na transformação digital. Mas será que o culminar dessa meta vai deixar de fora os sectores mais vulneráveis da sociedade?
“Se a transição digital não for bem gerida, se a transição digital não for justa e se não combater a desigualdade nas suas várias formas, o risco é muito elevado para a UE”, afirma ao PÚBLICO Barry Colfer, director de investigação do Instituto de Assuntos Internacionais e Europeus (IIEA, Institute of International and European Affairs), com sede em Dublin, na Irlanda.
Colfer, que é especialista em assuntos europeus e nas questões relacionadas com o futuro do trabalho, alerta que uma digitalização, para ser “justa”, precisa de “regras”. Caso contrário, pode existir um “conflito de gerações” e um choque entre as pessoas com mais habilitações e as com menos.
A Comissão Europeia (CE) já vincou, por diversas vezes, que a transição digital deve dar “prioridade às pessoas”, mas as metas definidas mostram a amplitude da ambição europeia. Até 2030, a CE quer ter mais de 20 milhões de pessoas especialistas em tecnologias de informação (TIC), ter pelo menos 80% da população com “competências digitais básicas” e 75% das empresas a utilizar “computação em nuvem/inteligência artificial.
A política e a transição digital
“Não estou seguro de que os nossos líderes levem isso [os riscos da transição digital] realmente a sério. E, se não fizermos isso bem, a transição digital, e as pessoas forem excluídas, vamos ter um ambiente político muito desafiante”, prossegue Colfer.
Um “ambiente político” que pode pôr em causa a própria coesão da União Europeia. Isto porque, adverte o professor da Universidade de Cambridge, existem partidos que “estão a potenciar as legítimas frustrações das pessoas que estão a ser deixadas para trás” — como é o caso dos movimentos de extrema-direita populista que crescem por toda a Europa. “Se essas pessoas forem deixadas para trás, elas não vão só ficar em desvantagem, mas também vão expressar, em termos políticos, posições contrárias ao projecto europeu”.
Ainda assim, apesar dos avisos, Barry Colfer defende que existem “mais benefícios do que pontos negativos” na transição digital. Uma digitalização “bem-feita” pode “criar mais oportunidades de emprego”, “melhorar a relação entre vida pessoal e laboral” e “regenerar vários locais”, sobretudo os mais afastados das grandes cidades, que sofrem com o despovoamento.
Para isso, diz, é preciso “garantir o acesso de todos às ferramentas digitais” e “assegurar os termos e as condições para que não haja exploração no trabalho” via online. “Eu penso que se a transição digital for bem gerida e se os nossos líderes a levaram a sério e investirem a sério, não tenho dúvidas de que vai melhorar as nossas comunidades”, afirma, elogiando a priorização da digitalização nos Planos de Recuperação e Resiliência. “É muito bom para a UE tomar a liderança no digital e no verde. É coerente e importante para o futuro de todos. É preciso é fazer as coisas bem-feitas”.
O ritmo da transição
Apesar das ambiciosas metas fixadas, para já, os dados demonstram que ainda há um longo caminho a percorrer. Segundo informações divulgadas em Novembro do ano passado num relatório da própria Comissão Europeia, apenas em quatro países — Finlândia, Suécia, Alemanha e Países Baixos— existe mais de 70% da população com competências básicas digitais. A meta definida até 2030 é de 80%.
No lado oposto, na Bulgária e na Roménia, o número de pessoas com competências digitais é inferior a uma em cada três. Em Portugal, segundo o mesmo relatório, o número de pessoas com as tais competências abrange pouco mais de metade da população (51,76%).
O documento demonstra também que os países já estão bastante avançados na digitalização dos serviços públicos. Sendo certo que a meta fixada pela UE é de 100% até 2030, nos dias que correm já existem 12 países com mais de 80% dos serviços públicos em modo digital (Portugal inclusive). Nesse domínio, apenas existe um Estado-membro com menos de metade dos serviços na Internet: a Roménia (44,4%). Não estará a transição digital a correr mais rápido dos que as competências dos cidadãos?
“Existem muitas pessoas que neste momento estão excluídas do acesso a alguns serviços, seja dos bancos ou da própria administração pública e de outros serviços postos à disposição das pessoas por via digital”, assinala Graça Carvalho, eurodeputada do PSD.
Apesar de defender uma estratégia para “aumentar as competências digitais da população”, a engenheira e professora universitária salienta que existe uma “camada da população” que não vai ter “capacidade ou interesse” em adquirir essas aptidões. “A população europeia está bastante envelhecida. Temos de ter soluções para essas pessoas, um período misto onde não seja tudo digital.”
Mas o risco não reside apenas na exclusão da população mais idosa e com menos apetência tecnológica. A transição digital pode replicar — e até agravar — outro tipo de desigualdades.
“Dentro da população que está a ficar marginalizada, há uma grande percentagem de mulheres”, realça Graça Carvalho, especificando que essa exclusão se dá quer ao nível das competências digitais da população, quer no número de especialistas no sector. “É preciso ter atenção para o digital não se tornar uma nova forma de discriminação. De discriminação na idade e de discriminação no género, que neste momento é.”
Uma via para a exclusão?
Segundo o já citado relatório da Comissão Europeia, a convergência de género no domínio das tecnologias da informação é ainda uma miragem. Apenas em três países — Bulgária, Grécia e Roménia — a participação das mulheres nas TIC é superior a 25%. Não há um único país da UE que supere os 30% de mulheres naquele campo. Portugal fica-se pelos 21,8%.
“O digital está a agravar a discriminação”, insiste a social-democrata. E os cenários futuros nem mostram uma tendência de inversão. “Só 17% dos estudantes do ensino superior nessas áreas são mulheres. E em termos de profissionais, actualmente, a média ronda os 22%. Portanto, nem estamos a melhorar”.
Graça Carvalho lembra ainda as estimativas que apontam que em 2030 cerca de 75% dos empregos vão requerer “competências avançadas” no digital, uma área onde vão estar as “melhores remunerações”.
A eurodeputada cita um inquérito divulgado recentemente que revelou que só 3% das jovens europeias dos dez aos 12 anos mostrou interesse em seguir uma profissão na área digital. “Se não fizermos nada para atrair mais mulheres para essas áreas, em vez de diminuir o fosso salarial e das pensões, vamos aumentá-lo”.
É preciso, então, apostar na “formação”, na “pedagogia” e nas “infra-estruturas”. Isto porque, apesar da ambição, a Europa ainda está “atrasada”: “Não temos infra-estruturas modernas na área digital. Precisamos de equipamentos que cubram a generalidade do território.”
Caso contrário, o risco é, mais uma vez, agravar problemas antigos e cavar o fosso entre as regiões mais e as menos desenvolvidas. E, tendo em conta que é “natural” que o investimento privado escolha as zonas com maior densidade populacional, Graça Carvalho apela à intervenção dos investimentos públicos.
“Espero que haja atenção às zonas de menos densidade populacional. O nosso interior pode deixar de ter os problemas que tem se for possível trabalhar lá remotamente e estar ligado às grandes capitais. É uma grande oportunidade”. O desafio é fazer desta nova oportunidade um caminho para desfazer velhos problemas.