A 10 de Dezembro de 2018, vários activistas manifestaram-se em Bruxelas, em frente de diversas instituições europeias, para reivindicar o direito à reparação de equipamentos electrónicos. Levaram consigo frigoríficos, microondas e máquinas de café que tinham de ser substituídos por não serem passíveis de conserto. “Numa sociedade descartável, reparar é revoltar-se”, lia-se num dos cartazes dos manifestantes.
O protesto simboliza o movimento Right to Repair que se tornou uma das bandeiras dos consumidores nos últimos anos. Naquele dia de 2018, os Estados-membros da União Europeia (UE) analisavam propostas para obrigar os fabricantes a tornar os produtos mais reparáveis. Um tema que já tinha sido trazido para a agenda europeia pelo Parlamento Europeu (PE), que, no ano anterior, tinha sugerido à Comissão várias medidas para dotar os produtos de um ciclo de vida mais longo.
Maria Manuel Leitão Marques, eurodeputada eleita pelo PS, que integra a comissão de Mercado Interno e Protecção dos Consumidores do PE, não tem dúvidas: o direito à reparação é uma “mudança fundamental” para o futuro — e por vários motivos.
“É um direito que permite aos consumidores poupanças ao prolongar a vida útil dos produtos e conservando aqueles que já estão habituados. Está provado que 77% dos europeus preferia reparar os seus produtos a substituí-los”, começa por dizer a socialista ao PÚBLICO, acrescentando que dos 36% que decidem substituir os equipamentos, 64% só o fazem porque a reparação custa mais do que comprar um novo. “Aqui é que está o cerne da questão”, refere Leitão Marques.
O direito à reparação baseia-se numa ideia simples: o proprietário de um produto deve ter a capacidade de o reparar ou de o levar a um técnico da sua preferência. O movimento surgiu muito como reacção às atitudes de alguns fabricantes, que começaram a tornar os produtos dificilmente reparáveis ou apenas reparáveis em determinados postos (normalmente espaços pertencentes ao próprio fabricante). É uma situação facilmente identificável: muita gente ainda tem lá em casa um velhinho telemóvel que se mantém operacional, enquanto outros equipamentos mais modernos foram avariando ao longo dos anos.
Por detrás do movimento está não só uma luta pela defesa dos consumidores, como também uma batalha pela sustentabilidade ambiental e pela promoção da economia circular. Segundo dados do Eurostat, referentes a 2020, 52,7% do lixo electrónico produzido na UE diz respeito a grandes electrodomésticos, como máquinas de lavar roupa ou frigoríficos. Seguem-se depois a electrónica de consumo e painéis fotovoltaicos (14,6%); equipamentos de telecomunicações, como computadores e telemóveis, (14,1%); e os pequenos electromédicos, como microondas ou tostadeiras (8,4%) — há ainda uma percentagem de 8,4% para outros tipos de produtos.
“Os resíduos electrónicos estão a crescer em média entre 3 a 5% a ano. São uma das maiores fontes de resíduos em crescimento na UE”, acrescenta Leitão Marques, que refere também que essa mudança na maneira como se produzem os mais variados equipamentos traria vantagens para a economia europeia. “Há estudos que demonstram que o emprego perdido pelo facto de prolongarmos a vida dos produtos é inferior àqueles empregos de proximidade que seriam criados pela UE para a reparação e manutenção dos produtos”.
Europa perdeu cultura do “fazer"
A própria Comissão Europeia reconhece a urgência da matéria e já anunciou que vai apresentar uma proposta legislativa para consagrar o direito à reparação durante o próximo ano. A intenção consta igualmente da Carta de Intenções apresentada no Estado da União de 2021, onde aquela medida está inserida Pacto Ecológico Europeu e é apresentada como uma das “principais iniciativas a apresentar em 2022”.
A proposta deve ser abrangente e obrigar os fabricantes dos produtos a disponibilizar “peças de substituição”, permitir o acesso a “reparadores independentes”, garantir a “interoperabilidade e standardização de peças”. Em cima da mesa está também a possibilidade de os produtos “serem acompanhados por um guia para as avarias mais frequentes”, explica Leitão Marques, considerando fundamental “lutar contra a obsolescência programada”. “É um grande objectivo que não apenas que favorece os consumidores, mas também ajuda na transição climática”.
Apesar do consenso político mais ou menos generalizado que existe sobre o direito à reparação, a deputada no PE eleita pelo PSD, Graça Carvalho, aponta algumas “barreiras” para aquela intenção se tornar efectiva. Um exemplo tem a ver com a “falta de mão de obra qualificada para a reparação” dos produtos. “A Europa perdeu a cultura do fazer”, atira.
Outro obstáculo poderá estar relacionado com a resistência por parte dos fabricantes, que “muitas vezes não querem fornecer o manual” destinado à reparação, baseando-se em “argumentos jurídicos de protecção de patentes”. “Não têm razão, há formas de ter manuais de reparação sem libertar os segredos de produção”, assinala a social-democrata, engenheira mecânica e professora universitária de profissão.
Estando em causa uma medida que, entre outros aspectos, deverá retirar às grandes multinacionais o monopólio da reparação dos próprios produtos, existe o risco real de essas empresas procurarem esquivar-se à lei. Terá a lei um carácter efectivo? Graça Carvalho reconhece a possibilidade, mas mostra-se confiante na aplicação da norma. “Na parte mais física, em tudo o que tem sido protecção dos consumidores, tem havido uma grande vigilância por parte das organizações de protecção dos consumidores. Há uma grande rede europeia e as coisas funcionam bem”, justifica deputada que faz parte da comissão de Indústria, Investigação e Energia.
Além das vantagens já apresentadas por Leitão Marques, a eurodeputada do PSD acrescenta outra: a ajuda que a reparação dos produtos pode dar para equilibrar a balança comercial da UE, uma vez que a “Europa tem um grande problema” no abastecimento de matérias-primas, que têm de ser importadas para a produção de vários equipamentos.
Em todo o caso, trata-se de garantir um direito e não de uma imposição. “Houve uma campanha nas redes sociais de desinformação a dizer que a UE ia obrigar as pessoas a não mudar de telemóvel ou que só podiam mudar de telemóvel ao fim de cinco anos. Não é isso que está em cima da mesa”, vinca a deputada.
O que explica também a força do movimento é que ele não incide apenas sobre aquilo que parece, isto é, sobre a possibilidade de reparar os equipamentos electrónicos. Ele representa igualmente uma tomada de posição para promover uma nova cultura, mais sustentável e menos consumista. “Há toda uma nova cultura de nos obrigar a mudar de produto”, refere Graça Carvalho, salientando que não basta a lei para mudar os comportamentos. “Temos de ter uma maior racionalidade nos nossos produtos e para isso até escusamos de esperar pela lei”.
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