Quando Graça Carvalho estava a tirar o doutoramento, na sua turma os alunos eram de origens e de continentes distintos. "Era essa a riqueza daquela universidade: termos palestinianos, egípcios, nigerianos, norte-americanos, portugueses, gregos..." Cabeças que pensavam e desenvolviam em conjunto são a metáfora de que a antiga ministra da Ciência e Ensino Superior se socorre para explicar o resultado que a Europa pode atingir se tornar a maior fraqueza - o impasse das migrações - numa "enorme força". No gabinete onde trabalha hoje em Estrasburgo, no Parlamento Europeu, a eurodeputada do PSD conta à TSF as expectativas que tem para os próximos anos, desejando que a UE, mas também Portugal, se possam tornar mais jovens, inovadores e diversos. Para isso, defende, serão necessárias lideranças fortes.
Houve surpresas no discurso do Estado da União, e na interpretação que dele faz Ursula von der Leyen? Algo a dececionou?
Houve surpresas, várias surpresas positivas, e houve uma deceção para mim. Achei muito importante o ênfase e a prioridade dados à saúde, que já vem na continuidade do discurso da presidente, e o anúncio do financiamento para esta nova autoridade que vai preparar a Europa para as futuras pandemias. É uma notícia importante, porque é algo de que se sentiu a falta. A nossa preparação e o bom resultado que estamos agora a ter nos 70% da população vacinada resultaram de todo o investimento que foi feito na ciência, mas o mercado interno não estava muito preparado para esta pandemia. O que nos valeu foi estarmos preparados do ponto de vista científico, o que nos fez desenvolver a vacina em pouco tempo.
O segundo anúncio positivo está relacionado com a digitalização, com o 5G, com a fibra, mas também com a prioridade às competências digitais. O ecossistema para os microprocessadores, que é algo que no meu relatório sobre supercomputadores, segundo o qual Portugal vai ter um supercomputador no Minho, pedia à Comissão Europeia. É algo de que precisamos, senão ficamos altamente dependentes da Ásia.
Uma nova estratégia dos cuidadores, sobre a qual também escrevi, à presidente da Comissão há cerca de dias, com outras colegas, homens e mulheres, mas essencialmente mulheres. A prioridade às alterações climáticas, e a duplicação do financiamento externo para a biodiversidade, e os quatro mil milhões adicionais para o financiamento do clima, também a nível global. Estes foram os pontos que considerei muito positivos.
Há duas deceções, uma delas relacionada com o Afeganistão. Foi dada uma grande prioridade política, mas depois foram anunciados cem milhões de euros, o que é muito pouco, para o que é preciso neste momento. Não nos foi dito como é que este processo todo se vai efetuar; como é que se ajuda sem se reconhecer o Governo taliban. Não se pode reconhecer um Governo que não cumpre o que prometeu, que não respeita os direitos humanos, os direitos das mulheres e das crianças.
A grande desilusão está relacionada com a ciência. Foi várias vezes referida a tecnologia muito relacionada com a digitalização, com os microprocessadores, mas a ciência fundamental que, para mim, é uma das partes importantes do futuro da Europa, não esteve presente neste discurso. Foi a nossa capacidade científica que nos salvou ou que nos pode vir a salvar desta pandemia. As duas principais vacinas foram cofinanciadas pelos fundos europeus de ciência e inovação. Tenho pena de que a ciência tenha estado fora do discurso da presidente da Comissão Europeia.
Os planos de recuperação europeus estão alinhados com aquelas que considera serem as prioridades para os próximos anos?
Os planos são diversos nos vários países. Algo que pedi desde o início foi uma grande prioridade à cultura. Nem todos os países deram essa prioridade à cultura. A República Checa deu 4% à cultura no plano de recuperação, o que é muito bom.
Na ciência e na inovação, todos os planos somados têm cerca de 30 mil milhões de euros, o que é pouco. Não chega a um terço do nosso programa de ciência e inovação, Horizonte Europa. Acho que é uma oportunidade perdida não termos mais ciência e inovação também nos planos de recuperação e resiliência. É uma das políticas para o futuro, e quem vai pagar - porque isto é dívida - este Plano de Recuperação e Resiliência são as pessoas que agora são jovens. O mínimo que se pode fazer é ter políticas que as preparem melhor para as suas vidas. Tenho pena que os Estados-membros não tenham posto mais na ciência e inovação. Alocaram a ciência e inovação às tecnologias verdes, no Green Deal, e digitais, mas é preciso ciência e inovação de um ponto de vista mais geral, uma medida mais horizontal.
No PRR português, é dada uma grande prioridade ao setor público, e o setor privado vai beneficiar indiretamente do setor público, por contratação pública. Acho que deveria haver mais apoio ao setor privado, ao setor produtivo, industrial, às pequenas e médias empresas.
A segunda crítica que tenho ao plano português é que esquece o ensino superior. O ensino superior está muito ausente do Plano de Recuperação e Resiliência, e o nosso ensino superior precisa de uma nova injeção de investimento. Nos edifícios já houve muito investimento, há 20 ou 30 anos, e os edifícios duram bastante. Mas o equipamento pedagógico está muito obsoleto; isto é transversal a toda a educação. Precisamos de um grande investimento nos novos meios pedagógicos, com toda a digitalização, e aí poderíamos aproveitar este plano para um maior investimento no ensino superior; está mais presente noutros graus da educação. O ensino superior é o parente pobre deste plano, e a pouca prioridade ao setor privado.
A educação e o ensino superior têm sido pastas prejudicadas neste contexto de pandemia...
Sim, sim, e a educação é essencial para preparar para o futuro. Algumas políticas têm corrido bem em Portugal, uma delas tem sido a política de formação de doutores. É uma política que vem desde há 20, 25 anos: formar sistematicamente os nossos jovens. É uma geração muito bem preparada. Temos investigadores de grande excelência por todo o mundo; tanto alargámos em número como aprofundámos a excelência científica. Estes doutores não estão a contribuir como poderiam para o desenvolvimento da riqueza do país, porque o nosso setor privado é ainda pequeno, não consegue absorver estas pessoas qualificadas, este know-how, transformá-lo em riqueza, para terem impacto na riqueza do país. Muito poucas empresas portuguesas têm doutorados nos seus quadros. Olhamos para a Bélgica, para a Holanda, que são países que exportam muito serviços, e têm percentagens perto de 40% de trabalhadores doutorados.
Temos de continuar com a estratégia de continuar a qualificar a população; qualificar os jovens, mas também qualificar a população mais velha, com competências básicas, com competências digitais. O plano de recuperação tem muito investimento nessa parte. No ensino superior, não tem o suficiente, e seria necessário equipamento pedagógico para enfrentar todas as novas tecnologias.
As últimas gerações são muito qualificadas, mas existe uma dificuldade, de resto, já assumida pelo Governo, de fixar estes talentos no país. Que medidas teriam de ser tomadas para que o país não exportasse esta mão-de-obra, profissionais de saúde incluídos?
Há aqui dois fatores. Um deles é o fator salário, mas até estou convencida de que não será o mais importante. Conheço muitos investigadores, e o mais importante será as condições de trabalho, as condições para fazerem o seu trabalho de uma forma que eles consideram capaz e que sentem que podem tirar partido dos equipamentos que têm. Por vezes, não têm essas condições e vão para outros países que lhes dão melhores condições de trabalho. Não é só uma questão salarial, mas também é.
Não sei se é do conhecimento público que os nossos profissionais de saúde, não só os médicos, mas também enfermeiros e técnicos de saúde, são do melhor que há no mundo. Houve uma política consciente e muito assumida - a reforma de Bolonha -, que foi do meu tempo e depois seguida pelo professor Mariano Gago, de tornar os cursos de tecnologia de saúde e de enfermagem cursos mais longos (4+2 anos) e muito científicos, profundos e que se baseassem na evidência científica. Há outra linha de discurso que é seguida noutros países: são cursos mais curtos, mais técnicos. Não foi a nossa via, portanto houve um grande investimento. No meu tempo, o curso em que investíamos mais por aluno era medicina, em seguida, enfermagem, e depois tecnologias da saúde. Isto é um investimento que o país tem feito ao longo dos anos, para ter profissionais de saúde de grande qualidade. Foi uma decisão política feita por mim e mantida por todos os ministros até agora, e muito bem. Mas depois não temos as infraestruturas para os reter, e eles são muito cobiçados. A Suíça e o Reino Unido conhecem as capacidades dos nossos profissionais e vêm buscá-los. Oferece-lhes melhores salários e infraestruturas.
Tenho esperança de que, além do financiamento dos próximos quatro, cinco anos, sejam feitas estas reformas essenciais. Senão não vale a pena, é bom enquanto dura mas depois não fica.
Na área da engenharia e da tecnologia, vinga a fragilidade que temos no setor privado. O setor público não consegue absorver todas estas pessoas, temos de ter um setor privado que utilize estas pessoas, que as empregue, que converta o seu conhecimento em riqueza, em produtos e exportações, porque eles são um investimento de todos nós.
Temos de olhar para o país e dar-lhe uma maior competitividade do ponto de vista industrial, do ponto de vista empresarial, menos burocracia, menos impostos, menos barreiras às pequenas e médias empresas para inovarem, para exportarem. Há muitas barreiras legislativas. Era necessária uma grande reforma nesta área para o país ser atraente no setor privado, e, se for necessário, dar incentivos para que estas empresas empreguem e tenham nos seus quadros doutorados.
A Justiça também não pode ser tão demorada, em todos os processos que envolvem o meio empresarial. Uma empresa não pode ficar à espera de decisões durante muito tempo.