Já estou a imaginar os anátemas provocados pelo título: “porco capitalista”, “deves trabalhar para as farmacêuticas”, “assassino”. Antes que os lancem, peço que me deem o benefício da dúvida: se há um fio condutor no meu trabalho de investigação e de participação cívica, é o da defesa da liberdade de acesso e uso de bens de propriedade intelectual. Essa tese, porém, não me convence quando o tema é o da suspensão das patentes sobre as vacinas.
O tema surgiu na sequência de uma proposta apresentada pela África do Sul e Índia, no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC), no sentido de se suspender temporariamente a obrigação de os Estados-membros protegerem os direitos de propriedade intelectual sobre produtos médicos destinados ao combate à covid-19. O objetivo? Promover o acesso universal e de baixo custo a estes produtos, incluindo as vacinas. O tema volta à agenda por estes dias, à medida que se aproxima uma nova ronda de negociações entre os Estados da OMC e numa altura em que a proposta conta já com o apoio do Parlamento Europeu, de Joe Biden e do diretor-geral da OMS.
É uma claque que impõe respeito, mas que não deve inibir-nos de analisar criticamente a proposta. Nessa análise, é preciso ir além daquilo a que a eurodeputada Graça Carvalho chamou “retórica simplista” (e, acrescento eu, populista e maniqueísta): uma retórica que opõe os países pobres às malvadas farmacêuticas e seus aliados.
Ao contrário do que essa retórica pretende fazer crer, a medida não só não é nenhuma bala de prata, como pode até ter efeitos perversos.
Primeiro, porque a suspensão das patentes não resolverá o principal problema: a escassez de capacidade produtiva a nível mundial. O processo de produção de vacinas baseadas na tecnologia mRNA é complexo, sendo poucos os países com capacidade instalada para tal. De resto, não tem havido falta de cooperação da parte das farmacêuticas, que têm vindo a celebrar acordos de licenciamento e a partilhar o seu know-how com empresas desses países, como a própria Índia. Essa cooperação, que é essencial à aceleração da oferta, é viabilizada precisamente pelas patentes e pela segurança que elas conferem.
Segundo, é improvável que a suspensão das patentes leve a uma diminuição relevante dos preços. Desde logo, porque os custos de produção e distribuição de vacinas mRNA são, só de si, muito altos. Mas também porque há um número crescente de vacinas concorrentes, o que, em conjugação com o facto de algumas produtoras terem abdicado das suas margens de lucro, tem vindo a pressionar os preços.
Por fim, uma suspensão de direitos de propriedade intelectual é uma medida drástica, com efeitos imprevisíveis para o esquema de incentivos à inovação, e que promove uma diminuição da confiança no sistema de patentes sobre produtos farmacêuticos. A instituir-se o precedente da suspensão, será realmente de esperar que, com o surgimento de novas variantes ou em futuras crises de saúde pública, as farmacêuticas voltem a fazer os mesmos investimentos em I&D?
O Papa Francisco disse há dias que vacinarmo-nos contra a Covid-19 é um “ato de amor”, tal como o é contribuirmos para que a generalidade das pessoas o faça. Mas não é a suspensão das patentes que vai transformar a saga da vacinação no Cântico dos Cânticos. A medida mais não seria do que uma vitória moral e potencialmente pírrica.
Só que as vitórias morais não ganham campeonatos. O campeonato mundial da vacinação ganha-se com estratégias assentes na cooperação e na solidariedade, de que são exemplos a iniciativa Covax e o apoio de Portugal aos PALOP e a Timor-Leste. Não se ganha, seguramente, mudando as regras do jogo da inovação a meio da prova.
* Artigo de Opinião de Tito Rendas, Docente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa