A Cimeira Social do Porto, "ponto alto" de uma presidência portuguesa do Conselho da União Europeia com poucos motivos de destaque, terminou com um importante compromisso entre Estados-membros, abrangendo temas como trabalho e emprego, competências e inovação, Estado social e proteção social. Que tudo isto tenha acontecido ao mesmo tempo que Portugal era palco de acontecimentos que contrariavam todos os valores que se pretendiam promover, mais do que uma infeliz coincidência, deveria ser motivo de reflexão.
Ao fim de uma semana, o caso do surto de covid-19 em Odemira e as condições de recrutamento e acolhimento de dezenas de trabalhadores parecem ter ficado resumidos no noticiário nacional ao rocambolesco alojamento temporário daqueles imigrantes em bungalows do aldeamento Zmar.
Percebe-se o fascínio desse ângulo, que tem todos os ingredientes de uma boa história, incluindo o alegado choque social entre proprietários e trabalhadores em busca de uma vida melhor. Só é pena que nesta narrativa tenham passado para segundo plano as perguntas às quais se impunha responder.
Porque se repetiu este episódio, depois de o mesmo ter sucedido em 2020, em Faro, e de até em Lisboa ter ocorrido um surto de covid-19 num hostel utilizado como residência temporária por imigrantes?
Quando será feita uma avaliação séria das práticas e impactos destes projetos de agricultura intensiva - ou industrial, como já foi classificada por alguns - que têm surgido em vários pontos do país? Porque ignorou o governo os alertas, nomeadamente do PSD, para o absurdo de se manter em vigor, em plena pandemia, uma resolução do Conselho de Ministros (179/2019) que tornava possível alojar até 16 pessoas numa casa, com uma área de 3,43 m2 por cabeça?
Percebe-se que ao governo interesse centrar a discussão dos acontecimentos de Odemira na temática da luta de classes. Porque isso evita a análise dos erros e omissões próprios que levam a que estes episódios se repitam. Mas aos cidadãos, mais do que a proclamação de nobres intenções e valores, interessam, sobretudo, as medidas que lhes dão substância. E isso é válido tanto para uma cimeira europeia de alto nível como para a gestão de um país.
Diga-se que a incoerência entre ações e intenções não é um exclusivo nacional, nem sequer europeu. Exemplo disso é o tema das vacinas, que voltou nesta semana a estar em alta com a surpreendente declaração da Administração norte-americana, liderada por Joe Biden, apoiando o levantamento das patentes.
É obviamente uma possibilidade que poucos rejeitarão à partida, e também não serei eu a fazê-lo. Já aconteceu no passado e, a longo prazo, pode efetivamente ser uma solução. Contudo, convém dizê-lo com toda a franqueza, no imediato, e por si só, não resolverá nada e poderá até trazer novos problemas, já que precisamos que as farmacêuticas continuem a investir em investigação científica para, por exemplo, acautelar novas estirpes do SARS-CoV-2.
A curto prazo, o que verdadeiramente ajuda os países mais desfavorecidos, nomeadamente aqueles onde não existe capacidade laboratorial instalada para a produção de fármacos inovadores - com ou sem patente -, e o que verdadeiramente ajudará o mundo a virar a página desta pandemia é o acesso universal às vacinas. Um acesso que pode ser agilizado aumentando a produção de quem já a está a fazer, por via de acordos de produção com terceiros e apoiando os países em desenvolvimento em toda a infraestrutura necessária para fazer as vacinas chegarem aos cidadãos. Nos Estados Unidos, o que tem vigorado é um embargo rigoroso às exportações, não só das vacinas, como de todos os seus componentes. E não consta que Joe Biden tenha anunciado o seu levantamento.